A discussão em torno das cotas raciais nas universidades públicas tem gerado bons debates — ao menos para isso serviu a ação movida pelo Democratas (ex-PFL) no Supremo Tribunal Federal. Num ano eleitoral, nunca é demais relembrar de qual lado estão as principais forças políticas e ideológicas do país, especialmente quando questionadas a refletir sobre temas de suma importância para a sociedade.
Nem mesmo o mais incauto se surpreendeu com a ação movida pelo DEM. Em alguns meios, a discussão no STF passava despercebida, até que o senador Demóstenes Torres reforçou publicamente os argumentos de seu partido e concedeu ao país — por meio de reportagem publicada na Folha de S.Paulo — sua análise a respeito do que foi a escravidão no Brasil.
Entre outras pérolas, Demóstenes se esforçou o quando pôde para dividir a responsabilidade histórica da escravidão entre europeus colonizadores e os próprios africanos e, citando Gilberto Freyre, defendeu a ideia de que a miscigenação brasileira é fruto de atos que se deram de forma consensual, e não como resultado da força dos senhores brancos sobre as mulheres negras.
Panfleto?
As declarações do senador foram concedidas há quase uma semana e, felizmente, durante os últimos dias não faltaram historiadores e articulistas para derrubar sua análise e deixar claro à sociedade qual o nível de interpretação que move a ação do Democratas.
Outro detalhe, no entanto, veio a público somente nesta terça-feira (9), por meio do artigo “O jornalismo delinqüente”, publicado por Demétrio Magnoli justamente na Folha. Para defender Demóstenes e sua tese, o sociólogo-simbolo da direita brasileira opta por apontar seus canhões justamente contra o jornal, um aliado de primeira hora do DEM e das forças conservadoras do país, ao definir a publicação das declarações do senador como “manipuladora” e o texto como um “panfleto disfarçado de reportagem”.
Até o momento, nenhum filiado ao DEM ou qualquer de seus simpatizantes veio a público criticar as reportagens que falsificaram a ficha criminal da ministra Dilma Rousseff, nem mesmo textos que definiam o regime militar brasileiro como “ditabranda”.
Um pouco de lucidez
Entre os argumentos levantados pelo DEM, somente o que se refere à suposta inconstitucionalidade das cotas tem merecido réplicas mais embasadas de setores progressistas da sociedade. Uma das principais vozes contrárias à turma “democrata” é o jurista Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo. Em entrevista ao site da revista CartaCapital, ele desmonta esse argumento com propriedade.
“A reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalidade por omissão. O artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988, é muito claro a esse respeito. ‘Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais’. Essa determinação constitucional não é um simples programa de intenções. É uma norma obrigatória”, diz o jurista.
Comparato, no entanto, vai mais fundo na entrevista. Sua análise demonstra que se existe algo que não cumpre a Constituição brasileira é exatamente o fato de os afro-descendentes brasileiros não contarem com políticas afirmativas eficientes. “E, devo acrescentar, se ficarmos apenas nessa política de cotas nas universidades, estaremos apenas cumprindo o mínimo daquilo que deveríamos fazer para levantar a população negra no Brasil”, arremata o professor.
A questão racial no Brasil talvez seja a ferida mais latente de sua elite. Ela tem plena consciência de seu passado e de que a exploração dos negros é a base da injustiça social que ainda caracteriza o país. Certamente serão necessárias algumas gerações para que essa chaga seja expurgada, mas cabe a uma sociedade democrática dar nomes a cada um dos bois envolvidos nessa disputa e esperar que a justiça estimule o fim da desigualdade.
Fernando Damasceno, CTB
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