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A condenação do Cristo marxista

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Que estranhos desígnios inspiraram o L’Osservatore Romano a atacar, em editorial, o escritor José Saramago, falecido recentemente na Espanha? Chamá-lo de populista extremista, que se referia “com comodidade a um Deus no qual jamais acreditou por considerar-se todo poderoso e onisciente” não revela apenas uma atitude fria e inflexível com um humanista ateu. Vai além. Reforça apreensões em relação aos objetivos políticos do Vaticano e suas consequências éticas.

Se a eleição do cardeal Ratzinger como supremo pontífice da Igreja Católica constituiu um acontecimento cuja gravidade poucos subestimaram, a superação integrista das contradições do Concílio Vaticano II já se delineava claramente no pontificado de seu antecessor, João Paulo II, quando as bases sociais da Teologia da Libertação foram firmemente atacadas.

Em 1983, ao visitar a América Central, suas homilias mantiveram fina sintonia com o projeto do governo Reagan para a região. Em Manágua, o papa não apenas não correspondeu às expectativas do povo nicaraguense de condenação clara às agressões incentivadas pelo imperialismo estadunidense, como também deu ênfase ao que mais dividia o governo sandinista e a hierarquia eclesiástica, à época: o da fidelidade dos sacerdotes e religiosas à igreja e à exigência de não participarem na responsabilidade da gestão governamental. Uma declaração de guerra aos partidários de um cristianismo progressista. Reafirmação classista de uma instituição multissecular.

Na Guatemala, um dos países em que a repressão dos governos militares fez mais vítimas entre os religiosos, João Paulo II não só visitou o presidente Ríos Montt, conhecido por ordenar massacres contra a oposição, como permitiu que o general lhe pedisse o afastamento de sacerdotes da política. Nos discursos papais não houve qualquer protesto contra fuzilamentos sistemáticos; apenas menções genéricas a Direitos Humanos. O Cristo do Vaticano, ao contrário do de Saramago, não deu ouvido a comunidades indígenas e camponesas tratadas como estrangeiras em seus próprios países.

Embora saiba muito bem que estão implícitas, na violência que se expande, a questão do poder, dos interesses econômicos nacionais e internacionais, além das considerações geopolíticas, o Jesus do L’Osservatore ignora que a promessa anunciada só se efetivará provocando uma transformação radical da condição social do homem. No livro de Saramago, Jesus, filho de José e amante de Madalena, vive a Paixão dos novos sujeitos. Seu sacrifício é a labuta das populações negras, o sofrimento das índias e o sangue camponês que jorra nos latifúndios.

A coexistência de um papado ultra-reacionário com governos de extrema-direita, como foi o de Bush, implica uma luta mundial de idéias que, não duvidem, será muito intensa. A crítica a uma religião de mercado, que exige o sacrifício de vidas humanas e o aniquilamento de natureza é a batalha da esquerda de nosso tempo.

Nessa guerra, ao contrário do que afirma o Vaticano, o Cristo de Saramago é aliado fundamental. Nas páginas do Evangelho segundo Jesus Cristo, a grande heresia não está no fato de o personagem pedir perdão pelos pecados de Deus. O que o Vaticano não pode perdoar é a denúncia corajosa a um cristianismo imperial e colonialista. Um sistema de crenças que, para validar a opressão, necessita de uma metafísica negativa sobre os homens e sua história.

Saramago provocou a ira da cúpula da Igreja Católica ao reafirmar a modernidade e os valores de igualdade e liberdade. Foi isso que seu Cristo Marxista proclamou. Não de maneira idílica, mas de forma dialética, como reafirmação de vidas que devem transcender a si mesmas, eliminando práticas e relações que geram opressão e miséria.

Gilson Caroni Filho