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Estatuto da Igualdade Racial: Quem divide os brasileiros?

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Os detratores das políticas afirmativas contra a desigualdade racial vêem a ameaça de “racialização” do Brasil. Mas a divisão entre brasileiros de pele clara e pele escura está enraizada na escravidão e em suas marcas que sobrevivem e precisam ser superaras para soldar o fosso social em nosso país.

Mesmo mutilado, o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (dia 16) provoca reações alérgicas em setores conservadores da elite brasileira. O texto original foi desfigurado pelo relator, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) que retirou as referências às cotas na educação, à saúde da população negra, e o incentivo para a contratação de negros pelas empresas privadas.

Mesmo assim, o texto – que foi tema de um editorial no jornal O Estado de S. Paulo com o significativo título de “Poderia ter sido pior” – foi desaprovado por seus detratores com o argumento de que ele fratura a sociedade brasileira e promove a “racialização” do país, ou a criação de um “Estado racializado”.

A divisão existe e seu reconhecimento é fundamental para corrigir uma fratura histórica e consolidar a democracia no país. O argumento da racialização é uma falácia que não resiste sequer a um exame superficial. Na verdade, o que os setores conservadores e aqueles que partilham sua opinião temem não é a criação artificial de divisões entre os brasileiros. Temem o reconhecimento institucional de sua existência como herança histórica da formação do Brasil e que persiste em nossos dias penalizando a parcela dos brasileiros que descende dos africanos escravizados durante os períodos colonial e imperial e que, por trazer na pele a marca dessa descendência, constituem os setores mais oprimidos da população brasileira.

O racismo brasileiro tem características próprias e é tão perverso quanto todas as outras formas de hierarquização das populações com base em características corporais, supondo a superioridade daqueles que têm pele clara e a inferioridade dos demais. Entre estes traços está a definição da “raça” (que não é biológica, mas histórico-social) a partir da aparência e não da origem. Isto é, no Brasil, uma pessoa de pele clara é considerada branca, criando aquilo que o historiador Clóvis Moura considerava como uma válvula de escape que permitia a incorporação ao grupo “superior” daqueles que, tendo origem índia ou africana, apresentassem traços europeus.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a definição de “raça” é diferente e não permite aquela válvula de escape pois, lá, o que conta é a origem e não a aparência, sendo considerado negro todo aquele que tiver um oitavo de sangue negro (isto é, aquele que tiver um bisavó negro), independente da cor de sua pele.

O racismo brasileiro nasceu sob a escravidão e mantém suas marcas. A definição “racial” pela aparência fundamenta a tese, falsa, de que aqui a escravidão teria sido amena e o preconceito racial inexistente – a tese da democracia racial, que passou a prevalecer no imaginário das classes dominantes a partir da década de 1930.

Uma outra característica do racismo típico de nosso país é aquela expressa através da frase antiga segundo a qual no Brasil não existe questão racial porque, aqui, o “negro conhece o seu lugar”. A historiadora baiana Wlamyra R. de Albuquerque (autora de O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil) demonstrou como, nos anos posteriores à abolição da escravatura, esse lugar do negro foi sancionado socialmente através de uma combinação de consenso social dos setores privilegiados com repressão pura e simples contra os ex-escravos recalcitrantes àquelas imposições.

Em consequência, o Brasil não precisou de uma legislação segregacionista porque a ordem social segregadora estava introjetada em cada pessoa, levando-as a aceitar como natural uma separação que indicava a cada um o seu lugar e que, por isso, não precisava ser explicitada através da lei. Naturalidade ainda não banida de todo e que reaparece toda vez que a presença de um ser humano de pele escura em um ambiente de brancos provoque estranheza e mesmo manifestações de hostilidade aberta. Foram criados assim – sem serem explicitamente nomeados – espaços de branco e espaços de negros. São espaços geográficos e sociais. Um exemplo é a corriqueira separação, nos edifícios, entre elevadores “de serviço” e “social”, estes virtualmente proibidos para pessoas de pele escura. Mas a separação é muito mais grave, e relegou os brasileiros de pele escura aos piores lugares, aos empregos mais humildes, desvalorizados e mal-remunerados, aos cortiços e favelas, à ausência da escola; abandonados à marginalidade, à miséria e à ignorância. Os shopping centers, os locais de moradia de “alto padrão”, são espaços de branco, assim como as universidades. Daí a gritaria generalizada contra o sistema de cotas que representa um rombo no muro “racializado” que restringe aos brasileiros de pele escura o acesso ao ensino superior. Era o seu lugar, sancionado pela elite, pelos costumes e pela ciência social desde o final do século 19.

Ao contrário do que pensam os detratores do Estatuto da Igualdade Racial, a divisão é histórica e resulta da exploração do trabalho escravo; da forma como a escravidão foi abolida, sob controle da oligarquia latifundiária e escravista; e da ausência de políticas de promoção social capazes de integrar à nova vida os antigos escravos libertados em 1888.

A profunda desigualdade que teve origem no período escravista se manteve e atravessou o longo período que intermedeia o fim daquele instituto iníquo e nosso tempo, no início do terceiro milênio.

Essa divisão, que resulta da “racialização” da sociedade brasileira desde sua formação histórica, tem sido demonstrada por todas as estatísticas, reiterada e monotonamente. Argumentos conservadores muitas vezes ressaltam a melhoria das condições de vida da população de pele escura. Ela reflete, mostram dois estudos publicados pelo Ipea em 2008 (Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição e As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição, organizado por Mário Theodoro) a melhoria geral nas condições de vida da população brasileira, principalmente desde a redemocratização de 1985, acentuada na década de 2000.

A novidade trazida pelos estudos do Ipea é o fato de que, nesse quadro de melhoria geral, a distância que marca a desigualdade entre os segmentos brancos e negros permanece. No quesito renda familiar, entre 1987 e 2007, os brancos sempre tiveram rendimentos médios duas vezes maiores do que os negros – oscilou em torno de 2,4 vezes até 1999, e começou a diminuir após 2001 mas, mesmo assim, mantendo-se no mesmo patamar de duas vezes maior (2,06 vezes, no número exato). “Ou seja”, dizem os pesquisadores, “a população branca ainda vive com um pouco mais que o dobro da renda disponível, na média, para a população negra”.

Situação semelhante foi observada em relação à educação. Em 1976, 92% dos brancos sabiam ler e escrever e somente 78% dos negros – uma diferença de 14 pontos percentuais. Desde então a universalização do ensino fundamental reduziu drasticamente essa diferença e a diferença entre os dois segmentos caiu para apenas 2 pontos percentuais, uma melhoria significativa.

Entretanto, nesse mesmo período, a exigência de maior número de anos de escolaridade formal transformou-se num diferencial que se reflete em melhores oportunidades no mercado de trabalho. E a diferença entre brancos e negros se agravou quando se considera o ensino superior. Em 1976, 5% dos brancos tinham diploma universitário, contra apenas 0,7% dos negros. Em 2006, quando os negros alcançaram a marca de 5%, os brancos haviam avançado muito mais, chegando aos 18%. A diferença que era antes de 4,3 pontos percentuais, se acentou, pulando para 13 pontos.

A mesma fratura pode ser observada na situação no emprego. Os piores empregos, como ocorre desde o final do século 19, são ocupados majoritariamente por trabalhadores negros. Eles são 60% dos trabalhadores agrícolas, 58% na construção civil, e 59% dos empregados domésticos. São também a maioria dos trabalhadores não remunerados (55%) e sem carteira assinada (55%).

O brasileiro é um povo único, formado por seres humanos de origens diferentes que aqui se fundiram no traumático e violento processo da escravidão e de suas consequências históricas. Dada a forma como se deram as relações entre povos de origens diferentes, miscigenados sob o tacão do europeu, surgiu um povo que não pode ser diferenciado mesmo porque, numa mesma família, podem haver pessoas de pele clara e de pele escura, filhos dos mesmos pais e mães. Eles criam a situação existencial na qual irmãos de pele diferente não podem, evidentemente, serem partes de povos diferentes mas de um único e mesmo povo, o povo brasileiro.

O combate contra o racismo cresce na democracia. Hoje, o Brasil vive seu mais longo período democrático, e a luta contra a desigualdade se acentua traduzindo-se em conquistas institucionais que, para serem alcançadas, precisaram superar obstáculos historicamente constituídos e alicerçados. As ações pela igualdade cresceram desde a década de 1980, traduzindo-se em medidas tomadas inicialmente por governos municipais e estaduais e, depois de 1985 e da Constituição de 1988, pelo governo federal, e que se acentuaram depois do ano 2000, principalmente após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, envolvendo particularmente as universidades e o Ministério Público do Trabalho.

Um dos grandes obstáculos é a alegação, feita por detratores do Estatuto da Igualdade Racial, de que a igualdade pode ser alcançada naturalmente através das políticas sociais, sendo desnecessárias as políticas afirmativas. Chegam a alegar a inconstitucionalidade das políticas afirmativas pois criariam “privilégios” para a parcela da população beneficiada, rompendo a igualdade de todos perante a lei sancionada pela Constituição.

Contra estes argumentos, os estudos do Ipea demonstram a insuficiência das políticas sociais para eliminar a desigualdade decorrente da cor da pele, cujos limites foram expostos nestes 20 anos de experiência de universalização das políticas sociais. A lentidão da mudança é visível na constatação de que, mantido o ritmo atual, a igualdade na renda familiar só poderá ser alcançada em 2029 – daqui a duas décadas. É uma velocidade histórica “demasiadamente lenta”, dizem os pesquisadores do Ipea. O combate à desigualdade racial exige mais que políticas sociais, e precisa ser acelerado por políticas afirmativas que tratem os desiguais de forma desigual para que, no final, a igualdade no perfil da distribuição da renda seja alcançada. A implantação dessas políticas afirmativas vai depender de muita luta para superar os obstáculos sociais, e históricos, representados por conservadores como o senador Demóstenes Torres e O Estado de S. Paulo, marcas do atraso enraizado no passado escravista que – este sim – divide os brasileiros e oprime aqueles de pele escura. É um fosso social que precisa ser superado através de políticas específicas pela igualdade e não, como querem os conservadores, fechando os olhos para sua realidade trágica.

Por José Carlos Ruy