Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
(“A triste partida”, Patativa do Assaré)
Enfrentar permanentemente a questão da fome não é mera caridade ou filantropia permissiva. Deveria ser o programa fundamental de cada governo comprometido com o ser humano. Obviamente, em Estados semidemocráticos, como é caso do Estado brasileiro, a fome é muito mais um elemento de salutar perpetuação da escravidão eleitoral ou nota de rodapé “exótico” em algum jornal da Big Mídia.
A fome também é um problema ideológico e cultural. Convencionou-se a acreditar na naturalidade da desgraça famélica alheia como um problema divino ou um “trágico” fenômeno da natureza. Para isto, Josué de Castro desbanca as certezas invioláveis de falaciosas premissas do ‘ocaso da fome’: “Querer justificar a fome do mundo como um fenômeno natural e inevitável não passa de uma técnica de mistificação para ocultar as suas verdadeiras causas que foram, no passado, o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos do mundo, e no presente o neocolonialismo econômico a que estão submetidos os países de economia primária, dependentes, subdesenvolvidos, que são também países de fome”.
Com a abdução da política pelo capital, urgentes debates são deixados de lado (ou distorcidos de sua realidade) dentro de uma sociedade em que poderiam contrariar os interesses dos capitalistas. Assuntos considerados mais “cosméticos” socialmente e pouco capazes de ferir as engrenagens capitalistas, como o debate em torno dos direitos de minorias (sexuais, “raciais”).
Obviamente, tais lutas sociais são importantes, porém, não afetam diretamente ao grande capital (paradoxalmente, como não são movimentos de “ruptura”, muitas vezes colaboram ainda para criar muito mais cisão dentro da própria sociedade!). A Big Mídia, por exemplo, insiste exaustivamente em considerar que a reforma agrária é um tema do passado. Ressalta Josué de Castro: “Precisamos enfrentar o tabu da reforma agrária – assunto proibido, escabroso, perigoso – com a mesma coragem com que enfrentamos o tabu da fome”.
Para muitos defensores da sociedade irrealista que só existe em duvidosos índices econométricos em véspera de eleição ou nas manchetes da Big Mídia, é necessário a sociedade se voltar para a importância da centralidade do debate em torno da fome e da subalimentação. Agora, o “grande” Brasil extasiado em crescimento de índice econômico chinês não pode ter a ousadia de mexer no próspero latifundiário?
Na mesma dimensão da propaganda governamental, o maior exportador de carne bovina do planeta (um robusto percentual de 28% do comércio mundial em 2008, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes, ABIEC) convive com o drama de milhões de pessoas que sequer podem comprar um único quilo de carne semanal (até mesmo mensal!). O seguido recorde dos grãos na agricultura abastece mercados consumidores com potencial poder de compra, e os grãos de pior qualidade podem encher as cestas básicas da nefasta caridade eleitoreira.
Não obstante, a produção cultural foi bem mais generosa com o ser humano e a denúncia da espoliação do homem pelo próprio homem sempre foi campo de interesse. Entre vários autores que fizeram a denúncia da fome no Nordeste, temos as canções imortais de Luiz Gonzaga, a poesia magistralmente seca de Patativa do Assaré e João Cabral de Melo Neto e a literatura de Graciliano Ramos, destacando o clássico “Vidas Secas”. No campo cinematográfico, vários filmes e documentários ressaltaram o descalabro da fome. Inspirado em “Vidas Secas”, recentemente se destaca o documentário de José Padilha, “Garapa” (2009), no qual o diretor procura imergir o espectador na perspectiva do drama dos que sentem fome nos bolsões de pobreza endêmica no Ceará. O título do documentário de Padilha bem é apropriado, uma vez que “garapa” é a mistura de água com açúcar ou rapadura, preparada pelas famílias para alimentar suas crianças e driblar momentaneamente a fome.
A fome não é uma querela pontual, para os seres humanos que vivem em regiões endêmicas de extrema pobreza trata-se asperamente da luta pela mera sobrevivência de seus corpos secos e tísicos. No caso brasileiro, a seca nordestina, como símbolo do mais profundo e bárbaro descarte humano, é uma seca de almas em desespero permanente.
Acima de tudo, é a seca derivada da criminosa indiferença dos centros de decisões sócio-econômicas que mais castiga e assassina anualmente de forma lenta e corrosiva milhões de homens, mulheres e principalmente as crianças. Salvo alguma catastrófica tragédia natural ou astronômica que dizime a espécie humana, seguramente apenas com a sociedade proporcionando novos modelos sócio-econômicos de produção, que tenham como base a socialização mais humana e igualitária da riqueza produzida em coletividade, se terá o cessar da perpetuação por completo do genocídio da fome.
Wellington Fontes Menezes
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