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Como James Brown tornou-se um militante negro

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Recém-lançado no Brasil, o livro O Dia em Que James Brown Salvou a Pátria (ed. Zahar), do jornalista James Sullivan, biografa o principal formulador do funk norte-americano a partir de um episódio crucial: a influência que o furacão Brown exerceu sobre a população negra dos Estados Unidos nos dias que se seguiram ao assassinato do reverendo Martin Luther King Jr. em 4 de abril de 1968.

Pode parecer a princípio um mero mergulho no passado histórico da nação ao norte. Mas de modo indireto o livro, originalmente nomeado The Hardest Working Man (How James Brown Saved the Soul of America), tem muito a dizer e revelar para leitores do Brasil de 2010, que se acostumam, aos poucos e aos sobressaltos, a encarar questões sensíveis como cotas, políticas afirmativas, reparação, direitos civis, reivindicações de minorias.

A trama gira em torno de um tenso show do cantor e compositor sulista (de Barnwell, Carolina do Sul) na cidade nortista de Boston, um dia após a morte do militante pelos direitos civis Luther King, quando a população negra dos EUA estava conflagrada e ensaiava levantes por vezes violentos país adentro. Após nervosas negociações de gabinete, decidiu-se que a apresentação seria exibida ao vivo (e a seguir reprisada) pela TV local.

Para alguns, esse estratagema teria servido para manter a população em casa, fixada nos quadris do astro pop, garantindo assim a pacificação das ruas da cidade (os tradutores do título em português desmontam ambiguidades e compram essa hipótese, ainda que em 5 de julho de 1968 Brown pudesse no máximo ter salvo Boston, e não a pátria inteira).

Para outros, igualmente contemplados no livro, aquele ato significaria a cooptação do cantor pelo poder branco – integrantes do movimento negro deixariam ali de chamá-lo de “Irmão Número 1 do Soul”, trocando a alcunha para “Irmão Vendido Número 1”.

Sullivan documenta a grande viagem empreendida por Brown nos anos 1960, de artista restrito ao público negro a poderoso comunicador e proprietário de três estações de rádio – mas, também, de homem inconsciente de sua própria identidade negra a militante e coinventor do “black power”.

Mesmo para quem defende que o Brasil não é racista em 2010, há de doer a constatação crua da discriminação explícita e da segregação profunda vigentes nos EUA nos primeiros anos daquela década, menos de 50 anos atrás. “As celebridades negras costumavam obter mais destaque quando suas personalidades eram menos desafiadoras”, afirma o autor a certa altura.

A questão aparentemente superficial do alisamento capilar aparece em depoimento transcrito da autobiografia do aguerrido ativista negro Malcolm X (assassinado em fevereiro de 1965): “Esse foi meu primeiro passo para a autodegradação, quando enfrentava aquela dor toda, literalmente queimando minha carne, para ter cabelo de branco”.

Brown também alisava o cabelo, e só em julho de 1968 adotaria um corte natural (e curto), exigindo o mesmo dos integrantes da banda. “Queria que as pessoas soubessem que uma das coisas que eu mais prezava e à qual renunciei foi o meu cabelo. Era um verdadeiro atrativo para a minha carreira. Mas eu o cortei pelo movimento”, afirmaria mais tarde, segundo Sullivan.

O trauma do assassinato de Luther King motivaria Brown a lançar também sua canção mais engajada politicamente, Say It Loud – I’m Black and I’m Proud (1968). O autor contempla a hipótese de que fosse uma estratégia do artista para reagir à desconfiança gerada pelo show televisionado de Boston. Por outro lado, evidencia que musicalmente o funk de Brown foi se tornando maciço e corpulento na mesma medida em que os movimentos pelos direitos civis dos negros cresciam e tomavam as ruas norte-americanas.

O futuro “Poderoso-Chefão do Soul” progredia e se consolidava enquanto incendiava de orgulho e raça funks como I Got You (I Feel Good) (1964), Papa’s Got a Brand New Bag (1965), a protopolitizada Don’t Be a Dropout (1967), Cold Sweat (1967), Hot Pants (1970), Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine (1970)…

Nesse ínterim, tornou-se um militante incansável a favor da educação para a população negra – sempre demarcando que ele próprio não tivera esse privilégio. Prestou apoio ao governo de Richard Nixon (1969-1974), devido a compromissos assumidos pelo político republicano em relação a ações afirmativas, renda mínima, iniciativas empresariais de minorias e empreendedorismo negro. “Embora o apoio a Nixon tenha deixado alguns de seus melhores amigos perplexos, ele jamais se arrependeu disso”, escreve Sullivan.

Se temas como esses traçam alguma semelhança com debates do Brasil de 2010, no ano de 1968 daqui a ditadura militar e seu AI-5 sufocavam qualquer respiro para lutas por direitos civis de minorias. Toni Tornado, Erlon Chaves e Dom Salvador foram brutalmente reprimidos quando levaram a cabo um levante funk (e sexy) no Festival Internacional da Canção da Globo em 1970.

Jorge Ben homenageou o atuante Muhammad Ali e tateou um “black is beautiful” à brasileira em Negro É Lindo (1971), mas permaneceu tímido e discreto a esse respeito. Wilson Simonal compôs e gravou um Tributo a Martin Luther King (1967), antes mesmo do assassinato do reverendo, e nos anos seguintes ensaiou comandar um “black power” tropicalista – sucumbiu definitivamente em 1974, condenado, preso, encrencado à esquerda e à direita.

Brown teria mais sorte e longevidade que Simonal, mas morreria decadente em 2006, apequenado por episódios de violência doméstica e prisões por burlar o fisco. “Você paga quando goza de todos os seus direitos. Não gozei dos meus direitos. Não tive essa chance”, justificou-se numa autobiografia.

Percalços à parte, o que o mantém e o manterá vivo séculos afora é o testemunho gravado no calor da perda de Luther King, em Say It Loud – I’m Black and I’m Proud: “Eu trabalhei com meus pés e minha mãos/ mas todo o trabalho que fiz foi para o outro homem/ agora exigimos uma chance de fazer as coisas por nós mesmos/ estamos cansados de bater nossas cabeças contra a parede/ e de trabalhar para os outros”.

Se escravizados e escravizadores ficaram ou não confinados no passado das Américas, cabe à consciência de cada um de nós responder.

Pedro Alexandre Sanches