Se a palavra “elite”, termo “bastante nebuloso” (Terry Eagleton), tem algum sentido ético positivo, designa pessoas que, para começar, não se acham superiores a ninguém. Uma elite humana (em que se incluem também muitos pobres do ponto de vista econômico) não trata os pobres como se esta “categoria” merecesse apenas um acompanhamento meia-boca.
Na edição corrente da revista Veja (nº 2176), o economista Gustavo Ioschpe escreve um artigo que oferece especial conotação para a palavra “elitista”. O artigo se intitula “Na educação, a esquerda é elitista”.
Para Ioschpe, “elitistas” são aqueles que, por exemplo, defendem as disciplinas filosofia e sociologia na grade curricular do ensino médio público. Os alunos pobres, defende Ioschpe, não precisam de tais matérias. É típico do elitismo de esquerda, segundo ele, ver como injustiça que os alunos ricos assistam a aulas variadas, tenham acesso a um ensino mais “sofisticado” (e o têm porque podem pagar por ele), e pleitear que os alunos pobres recebam gratuitamente tratamento igual ou semelhante. São palavras suas:
“Ocorre que o tempo de sala de aula é finito e o preparo dos professores brasileiros, precário. O que acontece? Quando o governo aprova, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia no ensino médio, isso significa que uma escola que hoje já não consegue ensinar o básico tem de dividir sua atenção, seus recursos e sua grade horária entre mais matérias ainda, diluindo ainda mais o aprendizado desse jovem. Isso faz com que o jovem carente possa falar de alienação e mais-valia, mas continue sem saber a tabuada ou sem conseguir escrever uma carta de apresentação. Seguirá distante das boas faculdades e, depois, dos bons empregos. Seguirá, enfim, sendo pobre.”
Meritocracia e ensino público
Na opinião do articulista, Filosofia e Sociologia (pelo menos para os pobres) se resume a marxismo. Por outro lado, talvez o angustie a possibilidade de esses alunos pobres começarem a refletir em termos econômicos e políticos…
Já os alunos ricos poderão falar de alienação e mais-valia e de outros conceitos (socráticos, aristotélicos, existencialistas, fenomenológicos, kantianos, hegelianos, habermasianos, foucaultianos, pós-estruturalistas…) porque seus professores têm formação melhor e, afinal, são alunos ricos, não são? Pertencem à elite por direito de nascimento, poderão estudar no exterior e um dia se tornarão até mesmo colunistas da revista Veja.
No mesmo artigo, Ioschpe se queixa também de que a esquerda elitista combate os princípios da meritocracia. Opõem-se a ela com um “lindo palavrório”, em nome da impossível igualdade. Conclusão? De novo, Ioschpe:
“Enquanto as escolas públicas tratam os desiguais como iguais e estimulam a acomodação, os filhos dos ricos aprendem mais por estarem em contextos que exigem mais.”
Ensino privado está destinado a fortalecer a elite
Em outras palavras, os alunos ricos estão estimulados a aprender porque devem competir, não são vítimas dessa história de “colaboração” ou “isonomia”. As escolas dos ricos, onde só os ricos entram (o mérito foi herdado?), tratam os desiguais como desiguais e os iguais como iguais. Residiria aí uma das teses fundamentais da meritocracia.
Os melhores serão premiados e os piores, punidos e esquecidos. A pergunta é: onde estão os desiguais e fracassados? Ora, a grande maioria dos desiguais está nas escolas públicas, nas escolas dos pobres!
Na visão convenientemente retorcida de Ioschpe, chancelada por uma mídia que torce o nariz para o trabalho que o MEC desempenhou nos últimos seis anos, as escolas públicas tornam os alunos pobres mais pobres e ainda mais despreparados. Elas são culpadas por seu próprio fracasso. E igualmente culpados são aqueles pensadores da nossa educação que adotam uma orientação “elitista”, exigindo que os pobres tenham uma educação especial, algo que jamais dará certo porque, em suma, o especial não é para todos…
Ecoam neste artigo as ideias do “projeto pedagógico” (supostamente não elitista, no sentido em que Ioschpe usa a expressão) do PSDB, em que se acredita numa formação de dois níveis. No nível inferior, as classes populares devem ser treinadas para trabalhar em carreiras menores, modestas carreiras de apoio. Basta saber tabuada e escrever cartas de apresentação. Os pobres que tiverem algum mérito chegarão um pouco mais longe. Poderão inclusive pagar, com sacrifício, as mensalidades de uma faculdade privada, trabalhando durante o dia e estudando à noite. E os que não conseguirem sequer concluir o ensino médio… cairão na economia informal, na melhor das hipóteses. Paciência!
Num outro nível, bem superior, os ricos, sempre com maiores e mais variadas oportunidades educacionais (aliadas a oportunidades sociais), alcançarão as melhores universidades (públicas, e de preferência poucas) ou prestigiosas universidades no exterior, a fim de exercerem mais tarde (é o seu meritório destino!) a liderança empresarial, cultural, política etc.
Ou seja, a educação pública, até o ensino médio, existe para que os pobres possam ser melhores funcionários dos ricos, incluindo nesse grupo a maior parte dos futuros professores. E o ensino privado, dos ricos, está destinado a fortalecer essa elite econômica.
Atuais professores são “incapazes”
Ainda nesta semana, agora na revista Época (02/08), um artigo assinado por Camila Guimarães se refere também à noção de elite. “Professores de elite” é o título. A matéria apresenta uma ONG criada pela norte-americana Wendy Kopp, cujo intuito é recrutar recém-formados nas melhores universidades de um país e “recrutá-los com a mesma agressividade dos bancos de Wall Street”, conforme Wendy afirma em entrevista à revista Veja de 25/03/2009,— para atuarem por tempo limitado em escolas públicas problemáticas.
A escola se transforma em desafio para uma “tropa de elite”, em campo de treinamento profissional para estagiários selecionados a dedo. O estágio dura dois anos, e é bem remunerado. No Rio de Janeiro, primeira cidade brasileira a adotar esse programa (ver informações aqui), a remuneração mensal será de R$ 2.500 (o dobro ou mais do que recebe um professor concursado em seus primeiros anos de trabalho naquela cidade).
A essência do programa não está em formar professores diretamente. Mais do que docentes, espera-se que esses jovens se tornem executivos, juízes, políticos, e que em suas carreiras continuem atentos às questões educacionais do país. Há a esperança suplementar de que, dentre esses estagiários, um certo número acabe optando pelo magistério, mas é bem provável que prefiram trabalhar em colégios particulares.
Iniciativa louvável atrair bons estudantes e transformá-los em professores de “elite”. Melhor isso do que nada. Contudo, fica implícita a mensagem de que os atuais professores, em sua maioria, são incapazes de fazer um bom trabalho. E por isso merecem o baixo salário que recebem.
Gabriel Perissé
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