As armadilhas da pobreza
Publicado em 09 Set, 2010 às 17h01
Todos os anos, 18 milhões de seres humanos morrem por causasrelacionadas à pobreza. Desse total, 10 milhões são crianças. Em 2008,o mundo comemorou sua segunda maior safra agrícola da história. Mesmoassim, 5 milhões de crianças morreram de fome por falta de acesso àcomida. Esses tipos de dados balizam os estudos do economista argentinoBernardo Kliksberg, que assessora o Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (Pnud) e outros tantos organismos multilaterais, como oUnicef e a Unesco. Criador de uma nova disciplina, a gerência social, oargentino é um dos pioneiros na disseminação do conceito de ética parao desenvolvimento, o capital social e a responsabilidade socialempresarial. Autor de 47 obras, seu livro mais recente, As Pessoas emPrimeiro Lugar, foi escrito em parceria com Amartya Sen, prêmio Nobelde Economia em 1998. Um dos palestrantes da conferência internacionaldo Instituto Ethos, que acontece em São Paulo entre a terça-feira 11 ea sexta 14, Kliksberg concedeu a seguinte entrevista a CartaCapital.Segundo ele, o círculo perverso da iniquidade só será rompido quandoenxergarmos a pobreza como uma violação dos direitos humanos, contra aqual é preciso lutar diariamente.
CartaCapital: No livro As Pessoas em PrimeiroLugar, escrito com Amartya Sen, o senhor reflete sobre ética edesenvolvimento. No mundo, esses conceitos realmente já são associados?
Bernardo Kliksberg: O mundo tem gerado excepcionaisavanços tecnológicos nas últimas décadas e aumentado drasticamente suacapacidade de produzir bens e serviços. Ao mesmo tempo, convivemos com3 bilhões de pobres, dos quais 1,2 bilhão são extremamente pobres e 2,6bilhões não têm sequer banheiro. Uma em cada seis pessoas passa fome emum mundo que pode fornecer alimentos para uma população maior do que aatual. A crise econômica mundial agravou esses problemas. A cidadaniaexige modelos econômicos que incluam a todos e existe uma demanda ativae crescente em muitos países nesse sentido. A sociedade civil está cadavez mais articulada e parte da juventude se organiza na internetrapidamente, pressionando a governança global por mudanças e pelaadoção de novas regras. A ética e a economia têm de estar a serviço depolíticas públicas inclusivas. Nos países nórdicos, no Canadá e napequena, mas muito ativa eticamente, Costa Rica está comprovado quepráticas éticas fazem bem à economia, geram maior expectativa de vida ecriam coesão social.
CC: Por que a América Latina é a região de maior desigualdade do planeta?
BK: O fato de a América Latina ser a região maisdesigual do mundo é a chave para entender a intensidade da pobreza naregião. Não é que haja pobreza e desigualdade. Há pobreza por causa dosaltos níveis de desigualdade. E, sem dúvida, as políticas ortodoxas sãoresponsáveis por aumentar ainda mais a distância entre ricos e pobres.Na Argentina, por exemplo, que foi um verdadeiro laboratório depolíticas econômicas ortodoxas nos anos 90, o fosso social aumentou225% entre os governos Alfonsín (1986) e Menem (2000). A pobrezatriplicou, o desemprego atingiu picos históricos, a base econômica deamplos setores de pequenos e médios empresários e profissionaisliberais foi destruída, 8 milhões deixaram de ser classe média para setornar novos pobres, o coeficiente de Gini (que mede a distribuição derenda) piorou drasticamente. A distância entre os 10% mais ricos e os10% mais pobres passou de 12 vezes em 1986 para 22 vezes em 1995, 26vezes em 2000 e 28,7 vezes em 2001. Essa política se revelousimplesmente má economia.
CC: Como o senhor analisa os atuais governos daregião, que tentam implementar políticas sociais mais inclusivas paraseus habitantes?
BK: Novos ventos históricos sopram na AméricaLatina. Os cidadãos buscam, por diferentes caminhos, uma economia derosto humano, o que tem gerado significativas mudanças geopolíticas naregião. O reflexo disso é uma nova geração de políticas sociais commaior destinação de recursos, mais ativa, com melhor gestão, e buscandoa participação das comunidades atendidas. Se não fosse por elas, oimpacto da crise teria sido ainda maior. Programas como o Fome Zero e oBolsa Família, implementados no Brasil pelo presidente Lula, ganharamrespeito e se transformaram em referência internacional por váriosmotivos. Têm a maior escala jamais conhecida em matéria de políticasocial no continente, conseguem maior redistribuição progressiva derenda para os mais pobres, melhoram a sua situação e envolvem os paisnas responsabilidades relacionadas a educação e saúde para com seusfilhos. E também conseguem conectar os pobres aos serviços do Estado.Quanto mais se avance em dar pleno acesso à educação e à saúde, e emver as comunidades a que se quer atender como sujeitos ativos, e nãocomo beneficiários passivos, crescerá o “empoderamento” da população.Há progressos em toda a América Latina, mas é preciso redobrar osesforços. Ainda há 190 milhões de pobres nessa região tão ricapotencialmente. Mais de um em cada três latino-americanos carecem doessencial. O motor é impulsionar a participação cidadã. Quanto maiorela for, melhor qualidade terão as políticas públicas.
CC: O senhor poderia explicar um pouco melhor o seu conceito de gerência social?
BK: A ênfase está na distribuição de renda, mas naAmérica Latina a desigualdade se dá também no acesso a ativosprodutivos, tais como a terra e uma boa educação. Mais de 50% dosjovens em muitos países da região não terminam o ensino médio (entre osjovens 20% mais pobres, apenas um entre três conseguem). Há também adesigualdade no acesso à saúde e as assimetrias em poder ingressar nomundo das tecnologias, a chamada brecha digital. Todas essas dimensõesda desigualdade interagem e se reforçam mutuamente. Existe desigualdadeaté no direito de formar uma família. Muitos casais jovens se abstêm defazê-lo porque não têm garantia de habitação, de emprego ou de entradade recursos mínimos. Todos esses fatores juntos criam “armadilhas depobreza”, ou seja, crianças que, por nascer na pobreza, têm problemasde saúde, enfrentam trabalho precoce, não conseguem concluir osecundário e, portanto, estão destinadas a ficar fora da economiaformal. Uma gestão social eficiente deve atuar sobre o conjunto decausas, somando-se políticas públicas ativas à responsabilidade socialdas empresas privadas e à mobilização da sociedade civil. A mídia podedar uma grande contribuição, tornando visível o invisível (os pobres),mostrando as boas práticas sociais, divulgando experiênciascomparativas e elevando o nível de qualidade do debate social. Quantomais próximos estiverem dos problemas reais da população, como apobreza, mais êxito os meios de comunicação terão.
Denise Ribeiro