Desmonte da TV Cultura contraria a comunicação democrática, plural e sem fins comerciais:
Publicado em 11 Set, 2010 às 14h56
No mês de agosto, os responsáveis pela administração e manutenção daRádio e TV Cultura anunciaram planos de desmonte da maior referêncianacional de meio de comunicação público. Por meio de João Sayad,presidente da Fundação Padre Anchieta (FPA), que decide seus rumos,anunciou-se a intenção de demitir 1400 funcionários de todas as áreasno final do ano, criando enorme e inevitável tensão em torno de seufuturo.
“Essas idéias de esvaziamento e desmonte vêm de algum tempo. Comoexemplo, os programas infantis, marcas registradas da TV, deixaram deser produzidos e sobrevivem de reprises. O nível de novas produções ébaixo já há alguns anos. O problema não é novo, é que explodiu agora,fruto de uma política que tampouco começou agora”, diz José Augusto deCamargo, o Guto, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Por conta disso, logo após a disseminação de tal propósito, criou-se oMovimento Salve a Rádio e TV Cultura, formado por diversas entidades dasociedade civil, sindicatos e profissionais da área, a fim de combatermais um golpe de uma gestão voltada ao mercado.
Em entrevista ao Correio, Rose Nogueira, ex-funcionária da Cultura etambém do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, afirma que “não hárazão alguma para esse desmonte. A TV Cultura tem de continuar com suaprogramação, como sempre foi, produzindo seus programas, aperfeiçoandocada vez mais sua produção e reverenciando seu próprio produto, que émaravilhoso”.
Por trás da idéia de enfraquecer nossa única emissora aberta de caráternão comercial, reside a persistente lógica de dissolução da ‘coisapública’, a favor de uma pretensa ‘eficiência’ administrativa, em maisum dos capítulos de transferência do patrimônio público e social àiniciativa privada. “A TV Cultura é um patrimônio do povo paulista ebrasileiro. Patrimônio material e cultural, pois é um dos melhoreslugares para se fazer televisão, e também histórico, tendo sido localde trabalho de gente como Wladimir Herzog e outros grandesprofissionais que passaram por lá”, assinala Rose.
Neoliberalismo, mais uma dose
“Na verdade, a TV tem projeto antigo de mudança de perfil, que éresultado de alguns fatores. Primeiramente, uma falta clara de políticado governo estadual para o setor de comunicação e cultura, refletida naTV. Em segundo, a TV não é administrada pelo Estado, tem perfil públicoe uma administração que guarda certa autonomia, impedindo que o governose utilize da máquina da FPA para outros fins que não exclusivamenteeducativos e culturais. O que pode desinteressar certos setorespolíticos a investir na TV”, esclarece Guto.
Para os dois dirigentes sindicais entrevistados pelo Correio, aquiloque tem sido levado adiante não representa nada mais do que umaofensiva de cunho neoliberal, similar às que vimos avançar sobrediversos setores de nossa vida. “Como não se sabe o que fazer comaquilo, que aparentemente não tem serventia imediata (por falta deprojeto político, necessidade de transparência e limitação quanto aouso de sua máquina), abandona-se o projeto da emissora pública. Dessaforma, junta-se a fome com a vontade de comer e cria-se o caldo decultura que os faz tentar levar adiante essa maluquice com a TVCultura”, explica Guto.
“Não sei de onde bateu essa idéia de desmonte, parece aquelas coisas dotempo do FHC e das privatizações. Aqueles mitos débeis mentais de que ainiciativa privada faz melhor. Se alguma coisa não está indo bem, vocêmuda a administração, não joga ela fora!”, completa Rose Nogueira.
Qualidade incontestável
Como se sabe, a emissora, principalmente por meio de seu canaltelevisivo, contribuiu sobremaneira para a formação cultural eeducacional de amplos setores da população paulista, exatamente ocontrário daquilo que oferecem as emissoras comerciais, com seujornalismo francamente enviesado, ‘atrações’ com as mais torpesexplorações de misérias humanas e completo rebaixamento intelectual.
“Ao longo dos anos, ela construiu essa imagem de oferecer umaprogramação de qualidade, uma espécie de oásis de bom gosto em meio aoque vemos aí”, lembra Guto. Para ele, é exatamente essa a força quedeverá sustentar a manutenção da Cultura tal como a conhecemos, longedas mãos do mercado e visões reducionistas de uma emissora cuja missãoé prestar bons serviços à sociedade, que por sinal a sustenta.
“A Cultura foi fundada na ditadura militar, mas se construiu através dotrabalho de seus funcionários. Foram basicamente os trabalhadores ealgumas direções que resistiram à idéia de aparelhamento da TV econseguiram transformá-la na melhor experiência que já tivemos emtermos de TV pública”, lembra Rose.
Ingerência política, resistência e solidariedade
Diante das ameaças, os trabalhadores da emissora buscam se defender.Nos espaços da mídia comercial, essas ameaças são travestidas denecessária transição ‘à modernidade’ ou ‘boa gestão’, como argumentouJoão Sayad, atual presidente da FPA. No entanto, esconde-se a totalingerência do governo Serra em sua gestão, que dialoga perfeitamentecom processos semelhantes nas áreas de saúde, educação, rodovias etc.
Tanto é assim que, recentemente, a emissora demitiu os jornalistasHeródoto Barbeiro e Gabriel Priolli por fazerem matérias equestionamentos sobre os abusivos pedágios das estradas paulistas,política altamente rejeitada por setores da população, que paga astarifas mais altas do mundo para circular pelo estado. Portanto, mesmocom o posterior recuo nas demissões, é absolutamente indisfarçável ainterferência política nos rumos da Cultura, que nos últimos temposainda anunciou mudanças na programação, como no Roda Viva, agoraapresentado por Marília Gabriela, e na tentativa frustrada de tirar doar o programa ‘Manos e Minas’, voltado ao Hip Hop e outrasmanifestações culturais provenientes das periferias de São Paulo.
Aliás, foi exatamente essa empreitada que fez aumentar a resistência aodesmonte da Cultura, pois não se esperava a enorme onda de críticasrelativas ao fim do programa, que já voltou à grade. “A questão doManos e Minas, mesmo que ‘repaginado’ para livrar a cara dos gestores,demonstrou o quanto isso tudo mobilizou a sociedade, o quanto elaestranhou tal decisão. Portanto, não será nada fácil o governo levar acabo esse projeto de desmontar a Cultura e transformá-la de produtorade conteúdo cultural em mera repetidora de conteúdos de terceiros,comprados no mercado”, atesta Guto.
Além do mais, há uma grave questão em meio ao embate de visões acercado papel da emissora: o futuro de seus funcionários. “É um absurdoalguém antecipar via imprensa a intenção de demitir 1400 funcionáriosem dezembro. É pedir pra criar uma crise. Não há razão alguma para essedesmonte”, exclama Rose.
Quanto à resistência dos trabalhadores afetados, ambos os dirigentesentrevistados pelo Correio atestam que a mobilização dos funcionários éforte o bastante para lutar contra essa nova ofensiva pró-mercado. Mas,como não poderia ser diferente, o nível de tensão não fica atrás.”Creio que eles têm uma boa organização, mas mesmo assim estãoapavorados, pois é algo que diz respeito a suas próprias vidas. Imagineum profissional com 10 anos de casa, dois filhos, pagando sua casaprópria… como fica esse profissional?! Ninguém tem o direito de fazerisso aos outros”, completa Rose, contemporânea de jornalistas quetransformaram a Cultura numa representação de “resistência”, como elamesma diz.
Porém, pela maneira pouco habilidosa de conduzir a questão, o governoterá grandes dificuldades em promover mais um golpe ao patrimôniopúblico. “Além de tudo, 1400 dispensas são demissão em massa, o que écaso para o Ministério Público do Trabalho. Perguntei para algumaspessoas como seriam pagas as indenizações e me disseram que poderiamvender o prédio. Mas, examinando a situação, descobri que não podemvender o prédio, pois é público. Não podem fazer isso”, completa Rose.
“Os funcionários estão mobilizados, a rigor existem duas frentes detrabalho na Fundação: a interna, da TV e Rádio Cultura, e a externa, daTV Justiça e Assembléia, também com funcionários da Cultura que prestamserviços a elas. Um grupo tem de discutir diretamente o futuro daCultura, e outro precisa se preocupar com o futuro das transmissões daTV Justiça e Assembléia, já que estão lotadas nesses outros canais”,detalha Guto.
“Há belíssimos estúdios, uma maravilhosa equipe… vão fazer o quê?Demitir para comprar fora o mesmo produto que existe em casa, pagando olucro dos outros? E essas produtoras vão empregar as pessoas com quesalários, abaixo daqueles que recebiam?”, questiona Rose.
De olho no futuro
Para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, o que estamos aconferir é apenas mais um capítulo que antagoniza setores progressistase retrógrados de nossa comunicação, que até hoje não se livrou dosmonopólios que a controlam. De acordo com ele, o governo Lula levou aomenos a um início da conscientização de que mudanças na área sãoimpreteríveis, além de representarem um forte anseio popular.
“Um ponto importante de ser colocado é o de que a TV Cultura não entrouna rede da TV Brasil, a EBC. Nem a Cultura de São Paulo e nem a TVEducativa do Rio Grande do Sul, ambos os estados sob governos do PSBD,conferindo caráter ideológico no sentido de não priorizar a TV pública.Não foi por acaso que não fizeram parte do projeto, recusando-odeliberadamente. Isso mostra uma diferença importante entre a visão dogoverno federal e a dos governos do PSDB”, analisa.
Por conta disso, ele ressalta a importância da 1ª. Conferência Nacionalda Comunicação, realizada em Brasília no final de 2009,escancaradamente desqualificada e boicotada pelos oligopólios soberanosde nossas comunicações.
“O governo Lula deixou vários problemas na comunicação sem solução.Alguns estão encaminhados, devendo ser finalizados no próximo governo,como as questões da banda larga, da digitalização etc. Ainda assim,destaco três coisas positivas: a realização da Confecom, um inegávelavanço histórico; a criação da TV pública, início de um trabalho que éuma referência de respeito; e em último lugar, menos visível, massignificativo, o começo da discussão acerca da distribuição do dinheirode publicidade”, enumera.
“A Cultura conta com muita simpatia de vários espectros sociais, tantodo povo simples, trabalhadores e donas de casa, como também deestudiosos; dos setores mais populares aos mais intelectualizados, quese preocupam em manter as características especiais, peculiares,diferenciadas, da TV Cultura em relação às outras emissoras comuns”,finaliza José Augusto Camargo.
É essa TV que educa que está sendo atacada. Enquanto isso, as demaisnavegam em mares sempre tranqüilos, desfrutando de enormes privilégios,a começar pela falta de fiscalização, contrapartida exigida de todaconcessão para Rádio e TV. Prossegue, assim, o Brasil como um bastiãopraticamente imbatível da desigualdade, do que não escapa a arena dacomunicação.
Gabriel Brito