O geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli escreveu um artigo raivososobre, ou melhor, contra o candidato a presidente José Serra, publicadono “Estadão” do último dia 2 de setembro com o título “A escolha deSerra”. Ao leitor, o artigo soa como uma tentativa ressentida epretensiosa de empurrar para baixo a cabeça de alguém que já se debateem dificuldades para sobrenadar. “Muy aliado”, esse articulista! Ou nãoé aliado? Mas Marina foi e continua mais próxima de Lula do que Serra.Magnoli estará pensando em anular o voto? Dadas as posições que abraçounos últimos anos, nos candidatos da esquerda socialista é que nãoestará cogitando votar.
Magnoli se aproveita de um erro indiscutível da campanha de Serra, o deassociá-lo a Lula através de uma foto em comum. Se a intenção eramostrar a experiência política e administrativa de Serra, comojustificaram alguns analistas, por que não mostrá-lo também ao lado deMontoro, de Tancredo e de Fernando Henrique, com os quais colaborou?Valendo-se dessa falha dos responsáveis pela campanha nas emissoras detelevisão e também de bobagens que o professor Guilhon de Albuquerquetem dito e tem feito, Magnoli investe, na realidade, contra a linhageral da campanha eleitoral e da trajetória recente de Serra. E faz acrítica dessa linha pela direita: este é o conteúdo essencial de seuartigo.
Magnoli adoraria que Serra fizesse a mesma inflexão que ele e passassea atacar Lula e o PT de modo furibundo e sem discernir as realizaçõespositivas das iniciativas erradas do governo federal nos últimos anos –realizações positivas, é bom ressaltar, que não decorreram apenas doque foi feito nos oito anos anteriores sob a presidência FernandoHenrique, como gostam de repetir preconceituosamente comentaristasconservadores.
Como em todos os governos liderados por forças de centro e baseados emalianças amplas e heterogêneas, espichadas desnecessariamente dadireita conservadora até, às vezes, setores da esquerda socialista, nosgovernos de Fernando Henrique e de Lula há o que aprovar e o quecondenar – sem falar na inflexão fundamental e desastrosa que elesfizeram à direita, a qual condicionou e travou a orientação e a atuaçãogerais de suas administrações, alterando a correlação progressista deforças que se vinha formando após o final da ditadura militar e que jáse manifestara, por exemplo, no apoio mútuo, hoje esquecido, entre oPSDB e o PT em algumas eleições e administrações e na luta comum contraCollor e contra o coronelão baiano ACM.
Para “olhar no retrovisor” de forma política e cientificamente correta,como preconiza Magnoli, Serra teria, portanto, de ir além dos mandatosde Lula e remontar, pelo menos, aos de Fernando Henrique. Teria quereconhecer acertos e apontar erros em ambos e questionar as inflexões àdireita que fizeram e que transtornaram completamente o quadro políticonacional, dando alento às forças da direita conservadora e do grandecapital em crise. Mas, para isso, Serra teria que ser o Serra dedécadas anteriores, teria que lutar por mudanças fundamentais eprogressistas na política econômica, social e externa, trabalhar por umrealinhamento corajoso da orientação política e administrativa do PSDB,das alianças do partido com outras agremiações partidárias e de suasrelações com sindicatos e entidades sociais, sobretudo populares.
A impressão é que Serra não se sentiu com forças, nem talvez comconvicções suficientes, para tentar essa guinada, que poderiareaproximá-lo e ao PSDB de setores expressivos de centro-esquerda e deesquerda. Ficou no meio do caminho das mudanças pelas quais precisavabatalhar. Percebeu talvez que, se agisse de outra maneira, não seria ocandidato do PSDB, nem em 2002, nem agora, nem contaria com o apoio,mesmo que oscilante e contrariado, de forças reacionárias – como, naeleição atual, os apoios do PFL-DEM, do PTB e de uma parcela da mídiaconservadora, sem esquecer o dos financiadores do grande capital.Contudo, apesar das concessões do candidato, esses setores vêmmanifestando desagrado com a linha da campanha de Serra, que começa aser abandonado e até mesmo hostilizado pelos aliados que tanto buscou àdireita.
Pesaram na escolha de Serra por entrar numa nova disputa presidencial,provavelmente, um erro de avaliação sobre a força da aliança contrária,uma confiança excessiva nos aliados que atraiu e o anseio pessoal dechegar à presidência sem medir os custos políticos com lucidez.Arriscando-me a pensar numa alternativa de seu ponto de vista pessoal,teria sido melhor que ele se candidatasse à reeleição ao importantegoverno de São Paulo, numa competição mais favorável e que poderiafazer basicamente com propostas administrativas. Era e continuaevidente que não seria viável reverter um fenômeno psicossocial como a”onda lulista”, mais emocional do que racional, apostando somente naalegação de sua experiência e competência maiores do que as de Dilma,quase se apresentando como o melhor continuador dos governos FernandoHenrique e Lula, e acrescentando apenas os inevitáveis ajustes eavanços que nenhum candidato pode deixar de prometer. Se o rumo geraldo país nos últimos 16 anos tem sido correto, inclusive nos doisgovernos Lula, requerendo apenas ajustes pontuais, o responsável maisrecente por esse rumo é que pode, evidentemente, apontar qual de seuscolaboradores reúne melhores condições para garantir o prosseguimentoda obra. A separação entre Lula e Dilma se torna inviável, portanto,como era fácil de se prever.
Não se perca de vista, porém – e isto Magnoli não enxerga –, que seriaainda mais difícil reverter a “onda lulista”, que sinaliza um novo eavassalador “populismo”, mais forte do que o de Getúlio, com umacontraofensiva truculenta e maniqueísta de direita.
Qual seria a alternativa imaginada por Magnoli? Negar qualquer avançodo país nos governos de Lula? Resvalar para uma campanha de denúncias econtra-denúncias de escândalos, turvando emocionalmente o debateeleitoral e deslocando-o de seus eixos temáticos? Enrolar-se novamentena bandeira de uma democracia unilateral e transferir a campanha dasruas para os tribunais?
As regras democráticas têm que valer para todas as administrações, emtodos os estados e em todas as eleições e reeleições. E se começarem aserem desengavetados dossiês para todos os lados? Os delitos eleitoraise penais têm que ser apurados e punidos, evidentemente, mas não aopreço de esvaziar o debate de idéias e propostas e transformar acampanha numa grande e certamente inconclusiva investigação policial.
O PSDB e seus aliados não deveriam esquecer que essa estratégia doestardalhaço moral foi tentada em 2006 e não deu certo. É possívelafirmar, portanto, com relativa segurança, que, se Serra ceder àspressões da direita insatisfeita e enveredar pelo rumo tumultuadorsugerido por ela, sofrerá uma derrota, além de política, biográfica.
O PSDB conta com vários sociólogos e cientistas políticos ilustres emsuas fileiras. Eles poderiam dedicar algum esforço a uma reavaliaçãomais objetiva e serena da malograda experiência do “udenismo” e do “ovode serpente” que essa experiência representou para dar vida a duasdécadas de uma ditadura militar implacável – na ânsia de combater peladireita o “getulismo” e seus desdobramentos. Cansados de perder nasurnas, esses criadores “udenistas” de serpentes começaram a freqüentaros quartéis. No final, para castigo deles, a ditadura pregada efestejada acabou se voltando também contra suas pretensões.
O “populismo” se combate pela esquerda, avançando na direção de uma sociedade democrática e socialista.
Duarte Pereira