Radical chique
Publicado em 15 Set, 2010 às 02h04
Enquanto seu irmão Stuart era preso e morto pela ditadura, em 1971,a jovem Hildegard Angel iniciava trajetória oposta, atuando nocolunismo social do jornal O Globo, onde trabalharia, entre idas evindas, por quase 40 anos. Em 1976, quando a mãe dos dois, a estilistaZuzu, foi assassinada pelo regime em um acidente de carro, Hildegard jáera uma jornalista conhecida e atriz de TV. Não deixa de serinteressante que, aos 60, recém-saída do extinto Jornal do Brasil(agora só online), Hilde assuma uma postura de franco-atiradora.
Suas armas são um blog e o Twitter. Seus alvos: a mídia e apreferência pelo candidato José Serra, do PSDB _no mês passado, eladeclarou voto em Dilma Rousseff, do PT. Na entrevista concedida aCartaCapital em sua cobertura de frente para o mar em Copacabana,Hildegard Angel, criadora do termo “emergente” para definir os novosricos cariocas, diz que Lula sofre preconceito por ser um deles, napolítica. “Já o Serra é o valoroso self-made man”, ironiza.
CartaCapital – Por que a sra. decidiu apoiar Dilma Rousseff?
Hildegard Angel – Ela estava sendo tão massacrada queachei ser o momento de me posicionar. Era um bombardeio de e-mails, desobrenomes coroadíssimos, atacando a Dilma. Começaram denegrindo pelofísico, que ela era feia, horrorosa, megera, medonha. Aí ela ficoubonita e não puderam mais falar. Então começaram a atacar a partemoral, que ela é assassina, terrorista, ladra. Isso é um reflexo daimpunidade. Enquanto não colocarmos nos devidos lugares os que foramresponsáveis pelas atrocidades da ditadura eles vão se sentir nodireito de forjar uma realidade inexistente, de denegrir nossosmártires, nossos heróis.
CC – Antes desta eleição, a senhora já tinha se posicionado politicamente?
HA – Não.Em nível nacional é a primeira vez. E acho que meu depoimento, e oalmoço que a Lily Marinho (viúva de roberto Marinho) promoveu, romperamo círculo demonizante erguido em torno da Dilma. Ali fez-se umafissura. A classe alta pensante, os ricos mais liberais, se permitiramuma abertura.
CC – D. Lily Marinho apoia Dilma?
HA – A Lilypassou a apoiar a Dilma depois que a conheceu. Quando ela fez o almoçopara a Dilma, estava agindo como a mulher do Roberto Marinho, que estáacima do bem e do mal e que pode se dar ao luxo de receber quem bementende. Mas a Dilma conquistou a Lily. Antes do almoço, podia atéhaver a idéia de receber também os outros candidatos. Depois, não haviamais.
CC – Houve reação dos filhos de Roberto Marinho pela madrasta ter recebido a candidata do PT?
HA –A Lily tem uma relação tão harmoniosa, tão respeitosa com eles, queacho que jamais teriam qualquer tipo de reação. O jornal e toda aorganização têm sido muito duros com a Dilma, mas a única matériapositiva sobre ela até hoje em O Globo, da primeira até a últimapalavra, foi a do almoço com a Lily.
CC – Há quatro anos o ex-prefeito de São Paulo Claudio Lembofez uma crítica, surpreendente para alguém do DEM, contra a elitebranca. A sra. acha que falava só da paulistana ou da carioca também?
HA – Daelite brasileira como um todo. É uma elite preconceituosa, que tem seusvalores, seus princípios, e acha muito difícil abrir mão de suasconvicções.
CC – Que tipo de rico tem preconceito com Lula?
HA –O rico do passado, da herança, do aluguel, muito apegado a tradições, asobrenome. É uma elite na maioria não produtiva, porque a eliteprodutiva, o homem que emprega, que gera progresso, desenvolvimento,não deixa de aplaudir o Lula. Mas às vezes a mulher deste homem nãoaplaude… Diplomatas aposentados também têm preconceito com Lula. OItamaraty sempre foi o filé mignon do serviço público brasileiro, pelacultura, pela erudição, pelo savoir faire. E a política externa atualvai na contramão disso tudo. Esse é um segmento social que rejeita oLula, o dos punhos de renda.
CC – Nos círculos que frequenta, ainda há gente que faz piada com a origem humilde de Lula?
HA –O vaivém dos e-mails de gente da classe A contra o Lula é de umavariedade enorme…. Por exemplo: as festas caipiras do Lula incomodarammuito. Já a Zuzu Angel sempre viu uma beleza extraordinária nacaipirice, tanto que foi a primeira a usar as rendas do Norte, amisturar com organza, a usar as chitas, hoje tão na moda. Minha mãetinha uma frase: a moda brasileira só será internacional se forlegítima. Por isso foi a primeira a ter penetração no exterior. Decerta forma, o Lula, com as festas caipiras dele, fez o que a Zuzu fezem 1960 com a moda caipira dela.
CC – Serra também tem origem humilde. Por que não existe este preconceito com ele?
HA –Porque o perfil do Lula se adequa mais ao do emergente. O do Serra é odo valoroso self made man… O Serra, para ser o homem que é, teve dedominar os códigos da elite, pelo estudo, pela convivência com pessoasintelectualmente superiores. Já o Lula foi abrindo caminho na base dacotovelada. E, de certa maneira, se manteve fiel à sua raça. Não setransformou com a ascensão, não se desligou, guardou seu ranço depobreza, a memória do sofrimento. Isso o tornou mais sensível.
CC – E por outro lado o faz ser malvisto?
HA –Sim, porque nunca será um igual e nem faz questão. A dona MarisaLetícia nunca abriu seus salões. Durante o governo FHC, fui inúmerasvezes convidada para recepções no Itamaraty e, em governos anteriores,até no Palácio da Alvorada. No governo Lula só fui convidada uma vez,para o Itamaraty. Black-tie nunca existiu. Isso cria uma limitação detrânsito social. Não há uma interação para esta sociedade se inserirdentro de uma linguagem que não seja de gabinete junto à família Lula.Talvez ele não se sentisse confortável fazendo isso, não é sua praia.
CC – Ainda tem muito preconceito de classe no Brasil?
HA –Cada vez menos, mas tem. O que Lula sofre é preconceito de classe, masestá sendo superado por ele mesmo. Essa possível vitória da Dilmamostra que não é só o povão, não é são só aqueles que melhoraram desituação. Tem muito rico pensando diferente, saindo do casulo, dessegueto de pensamento.
CC – O interessante é que o dinheiro também tem de ser bem-nascido. De padaria, de marmita, não é dinheiro “bom”.
HA –O dinheiro do comércio sempre foi visto no Brasil como um dinheiro sembase cultural, de origem ruim. Já o dinheiro da indústria, da áreafinanceira, era “digno”. Agora, com a falta generalizada de dinheiro nomeio dos que eram muito ricos, essas pessoas deste dinheiro de origemmenos nobre conseguiram uma posição de respeitabilidade no ambientesocial.
CC – Os emergentes são mais respeitados?
HA – Sãomais aceitos, embora o verdadeiro emergente não esteja mais preocupadocom isso. O verdadeiro emergente não tem aquelas veleidades do nouveauriche de antigamente. O nouveau riche de ontem queria entrar para osoçaite, que seus filhos estudassem com os filhos do soçaite, tinhamaquela visão encantada da alta sociedade. O emergente de hoje tem maisnoção do seu poder, não é tão submisso. Com o empobrecimento do ricotradicional, o rico do dinheiro novo se achou numa posição de nãoprecisar fazer tanto a corte a essas pessoas.
CC – O dinheiro de Eike Batista, por exemplo, é “nobre”?
HA – Culturalmentefalando, sim. Ele é filho de Eliezer Batista, que tinha grande statusno país há muitas décadas. O que acontece é que o Eike sabe muito bem oque quer. Gosta de esporte, de mulher bonita, dos filhos e do trabalhodele. Sua vida é um retrato disso. Tem um carro espetacular de corridana sala, tem casa decorada com troféus das suas lanchas. Ele poderiater um Picasso, mas não é aquele rico tradicional. Nós temos no paísessa classe da riqueza envergonhada, que não tem muito como explicar oseu dinheiro, da riqueza escondida, que não pode ser fotografada… E oEike, como tudo dele, acredito, seja declarado lá no imposto, podeexpor seu dinheiro. Ele é o rico da riqueza assumida.
CC – O jornalista Mauricio Stycer estudou a coluna de CésarGiobbi no Estadão em 2002, quando Lula se candidatou pela primeira vez,e concluiu que o colunista fez campanha disfarçada para Serra. Isso écomum?
HA – Ah, a Miriam Leitão também faz… É comum ocolunista ter afinidade com o veículo e ter uma linha de raciocínio quevai de encontro à dele e ao meio em que convive. O Giobbi é uma pessoaestimadíssima na alta sociedade paulistana, não é visto nem comojornalista, é visto como um da turma. A Monica Bergamo (da Folha) não évista como uma da turma. O Giobbi é um do time, então raciocina deacordo com seu time.
CC – O colunista social no Brasil sempre é de direita?
HA –Não, os colunistas têm a posição dos seus jornais. Tenho o privilégioque nem a posição do meu jornal eu tinha. O JB se manteve fazendo umjornalismo bem tucano até seis meses atrás, mas eu mantive minhaindependência e o jornal me deu essa liberdade, o que não é comum.
CC – Dos colunistas sociais clássicos, como Ibrahim Sued, tinha algum que era mais de esquerda?
HA –O Zózimo (Barrozo do Amaral) era visto à esquerda, mas era muitodiscreto, eu nunca o vi se posicionar ostensivamente na contramão doseu grupo social. Isso não existe. Havia na época uma coisa charmosa,atraente, um esquerdismo light, fazia parte do put together daelegância.
CC – A sra. teve uma trajetória bem diferente do seu irmão Stuart. Era a burguesa da família?
HA – Não,era a caçula. A sobrevivente. Eu era atriz de teatro e passei a ter umaatividade paralela, o jornalismo, que acabou se sobrepondo à atividadeartística. Até porque quando entramos no processo das comédias ligeirasem decorrência da censura, não vi mais graça. Não sei se houve algumcomponente psicológico nisso, mas um mês depois da morte de minha mãe, não renovei mais o contrato. Estava em cartaz com uma comédia de grandesucesso, “Bonifácio Bilhões”, com Lima Duarte e Armando Bogus. Não meaproximei mais do teatro, já estava com minha carreira encaminhada parao jornalismo. De repente me vi sem mãe, sem irmão, sem irmã (enviadapara a França), meu pai morando no interior com outra família. Eu era aAngel que ficou para sobreviver, na atividade que sabia fazer, ojornalismo social, mas isso me custou o preço de eu ter de me calar enem sequer refletir. Quando se vive num processo de muito medo você nãoreflete, só sobrevive. Eu consegui sobreviver tão bem que hoje eu falo.E vejo pessoas que deveriam estar falando, caladas.
CC – Outro dia a sra. falou no twitter que acha que a filhade Serra, Verônica, deveria abrir o sigilo fiscal para acabar com asdúvidas.
HA – Não só a filha do Serra, todo homem públicono país e seus parentes próximos deveriam tomar a iniciativa de abrirseu imposto de renda, sua evolução patrimonial. Deveria ser lei, umaobrigação ética, moral. Causa estranheza a gente ver figuras políticascarimbadas de um dia para outro mudarem de casa, de bairro, de status,de carro, de avião, sem ter uma história profissional que justifiqueisso. Devia partir deles, desses homens que se dizem honrados, fazeresse gesto. Por isso acho esse escândalo pífio.
CC – A sra. também criticou na rede a passeata dos humoristas contra a “censura”. Por quê?
HA – Apasseata deles não era a favor do humor, era a favor do Serra, não eracontra a censura, era contra o governo. Foi uma passeata que teve umdefeito de origem: não esclarecer o real motivo do humor não estarliberado, que era um projeto dos deputados, não do governo ou do TSE.Ou seja, foi uma passeata ignorante que disseminava a ignorância. Quemfaz humor político não pode ser ignorante, porque é o humor maissofisticado que há. Além disso, vi no CQC eles fazendo humor de umamaneira muito grosseira com dona Marisa Letícia, dizendo que o EikeBatista tinha faturado ela e ia comprar uma coleira… Isso se diz damulher do presidente da República? É comparável à ofensa que o Irã fezem relação a Carla Bruni.
CC – Manifestar-se politicamente agora a recoloca mais no caminho do Stuart e da Zuzu?
HA – Mesinto um pouco refém da coragem da minha família, é como se tivesseretomado meu curso. Como se cumprisse uma trajetória que estava ali meesperando, neste momento que as pessoas se acomodaram, que estãosubmetidas a seus empregos, todas colocadas na grande imprensa, com umaposição monocórdia, um pensamento único. Vou estar sendo dura e talvezinjusta, mas é muito fácil ser herói quando isso lhe dá ibope. Difícilé ir contra a corrente quando isso vai pegar mal para você. Sou umacolunista social e meu patrimônio são as elites. Meu leitoradoprincipal são as elites. Me surpreende e me enternece que elas merespeitem agora mais do que nunca.
CC – Pretende se tornar uma guerrilheira online?
HA – Euseria muito pretensiosa e desrespeitosa se de alguma maneira usasseessa qualificação de guerrilheira. Guerrilheiro foi meu irmão. Eu nãofui. Estou tirando o atraso, só isso.
Cynara Menezes em Carta Capital