Ana Helena Tavares: A bolinha de jornal e a barbárie
Publicado em 25 Out, 2010 às 14h06
José Serra, como ex-ministro da saúde, deveria saber que o ser humano não é feito de papel, tem sentimentos. Também não é (só) feito de fel, salvo em alguns momentos. Mas ele não sabe de nada disso. Caçoa, zomba da inteligência alheia, ridiculariza a si próprio. Não mais se pode ver ao espelho com o perigo de este se voltar contra si.
Na quarta-feira passada, resolveu caminhar pelo calçadão de Campo Grande, reduto popular do Rio de Janeiro. Acenava pro vento, mas, mesmo este, não tem andado a seu favor.
Iniciou-se uma confusão, embate natural entre militantes de causas tão distintas, quando, de repente, Serra é atingido na cabeça por algo. Continua acenando pro vento durante 20 minutos, quando após um telefonema, leva as mãos à cabeça. Foi a senha para fotógrafos bem treinados transformarem confusão em tragédia, showmício em shownalismo.
O telejornal noturno da emissora auto-intitulada líder de audiência levou para o povo, que tanto ama, a seguinte informação: “Serra foi agredido por petistas”. O jornal O Globo do dia seguinte, que hoje representa verdadeiro monopólio no Rio de Janeiro, enfatizou. Sem elementos para afirmar de onde partiu o tal objeto, colocar a culpa na militância petista só pode ser entendido como calúnia, injúria, infâmia, difamação e outros nomes piores. Tudo passível de processo, caso o partido estivesse interessado. Mas o diabo, às vezes, se esquece da concorrência ou, talvez, a menospreze, o que é mais provável.
Pouco depois de o JN mentir descaradamente, o jornal do SBT levou ao ar vídeo elucidativo. O “objeto pesado”, antes tido como um rolo de fita crepe, não passaria de uma mísera bolinha de papel que, ainda por cima, foi claramente atirada com pouca força. Vamos combinar que se isso é “agressão” guerra de travesseiro também é. Era o caso de o isento conglomerado midiático global levar ao ar um plantão: erramos! Era o caso de o diretor de redação do jornal impresso, a sair horas depois, ir à gráfica e gritar: parem as máquinas, erramos! Mas nada disso foi feito. Porque não foi erro, foi pouca-vergonha mesmo.
Pouca vergonha de tumultuar um processo eleitoral já tão tumultuado e com um teatro de quinta. Teatro que, além de Serra e seus jornalistas amestrados, contou com atores de renome como o Dr. Jacob Kligerman, cirurgião de cabeça e pescoço, que atendeu o “ferido” em uma clínica em Botafogo. O citado médico é diretor do Inca e amigo do candidato. Quem disse que Serra não tem amigos? Além disso, Dr. Kligerman foi secretário municipal de Saúde do Rio, durante a gestão do ex-prefeito César Maia. Tudo em casa.
É digno de nota que o jornal carioca O Dia cumpriu hoje um bom jornalismo ao dar manchete para o incidente desta quarta-feira simplesmente como uma “confusão”. Mas, vejam vocês que, para o bem ou para o mal, este episódio foi amplamente noticiado. Enquanto isso, 5 dias antes, em 15 de Outubro, o jornal O Estado do Acre, terra de Chico Mendes, berço do PT, dava um grito sem eco, denunciava sozinho que um militante petista foi morto por um opositor por motivo absolutamente torpe: o petista teve a infelicidade de fazer uma brincadeirinha, colando nas costas do outro um adesivo pró-Dilma. Foi o suficiente pro sujeito ir até sua casa, pegar uma espingarda, voltar ao bar onde estavam e assassinar friamente o petista, com uma única bala disparada à queima-roupa. Selvageria pura.
O assassino está até hoje foragido. Imaginem se fosse o contrário e ele fosse do PT? Mereceria de certo um plantão da Rede Globo, com um indignado casal de apresentadores, e uma capa especial da Veja, sob o título: “Chico Mendes chora”.
Este arbítrio máfio-midiático, a que o brasileiro que não tem internet está submetido, é o que emperra a democracia. É verdadeiramente o que se pode chamar de barbárie. O resto é bolinha de jornal.
P.S. Depois de fechado este artigo, a Globo “produziu” um vídeo tentando provar que o tal objeto era mesmo pesado, algo como um rolo de fita crepe. O tal vídeo foi desmascarado por um professor de jornalismo gráfico. Confiram esta história.
Ana Helena Tavares