Lula: "Se eu tivesse seguido FHC, o Brasil tinha quebrado"
Em entrevista concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12 (Argentina) e La Jornada (México), na manhã desta quinta-feira (30), em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala das comparações que são feitas entre seu governo e o de Fernando Henrique Cardoso, rebatendo a ideia de continuidade. “Nós só chegamos onde nós chegamos porque nós fizemos as coisas diferentes”, diz.
“Se eu tivesse seguido a política do Fernando Henrique, o Brasil tinha quebrado”, agfrega o presidente, que diz se considerar “um homem de esquerda”. A seu ver, “os resultados das políticas que nós fizemos são tudo o que a esquerda sonhava que fosse feito”.
Segundo Lula, agora há prioridades para o futuro: “Primeiro convencer o meu partido de que a reforma política é importante, e vou trabalhar para isso. E depois, convencer os partidos aliados de que a reforma política é importante. Se tivermos maioria, poderemos votar a reforma política, eu diria, nos próximos dois anos”.
Algumas pessoas elogiam seu governo dizendo que o presidente Lula é a continuidade do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso…
Primeiro vamos ter claro o seguinte: “Nós só chegamos aonde nós chegamos porque nós fizemos as coisas diferentes. Eu só queria te dizer que quando eu tomei a Presidência a Petrobras valia US$ 13 bilhões. E hoje a Petrobras vale US$ 220 bilhões. Alguma coisa mudou, sabe?
Quando eu cheguei aqui no governo, a palavra de ordem era que o governo não poderia gastar, não poderia fazer investimentos, porque tudo tinha que garantir o superávit primário. E era preciso cuidar do déficit. Ora, o que aconteceu, o que aconteceu meu filho?
Nós, que ficávamos subordinados ao FMI, nos livramos do FMI. Nós, que não tínhamos nenhuma reserva, vamos chegar no final do ano a US$ 300 bilhões de reservas. Nós, que éramos devedores, viramos credores do FMI. E a situação do Brasil mudou radicalmente, ou seja, nós incluímos os milhões de excluídos que não eram levados em conta.
Nós éramos um país de economia capitalista sem capital, sem crédito, sem investimento. Eu acho que não… Eu não me importo muito com determinadas avaliações. Quando eu comecei a minha vida política, no sindicato, tinha gente da ultraesquerda que me chamava de agente da CIA, sobretudo o pessoal do partidão daquele tempo. Quando eu virei favorável… eu era contra a ocupação do Afeganistão pelos russos, aí, eu virei agente da CIA.
Então, as pessoas ficavam querendo saber o meu perfil ideológico, então, muitas vezes, eu ia a um debate e as pessoas: “O que você é? Você é isso, é aquilo?”. Eu dizia: eu sou torneiro mecânico. “Você é comunista?”. Não, eu sou torneiro mecânico. É porque eu nunca gostei de ser muito rotulado.
Cada país tem as suas particularidade. Eu acho que os Kirchner, tanto o Néstor quanto a Cristina, têm o seu estilo de governar. O dado concreto é que a Argentina está melhorando, esse é o dado concreto e objetivo. Nosso querido Pepe Mujica tem seu modelo de governar; o fato concreto é que o Uruguai está melhorando. Eu tenho o meu tipo; o fato concreto é que o Brasil está melhorando. O Evo tem seu tipo; o fato concreto é que está melhorando, e assim vale para todo mundo. É isso que me interessa.
Esse negócio da imprensa dizer: ”O Lula é bonzinho e o Chávez é mau”. O Chávez tem que ser bom para o povo da Venezuela, e eu tenho que ser bom para o povo do Brasil, e a verdade é que a Venezuela melhorou com o Chávez, essa é a verdade. Quantas eleições o Chávez participou nesse tempo, gente? E ganhou todas, acaba de ganhar mais uma: “Ah, mas não fez a maioria absoluta”. Ótimo, eu acho que vai ser bom para o Chávez, porque ele vai ter que exercitar o debate político com mais força, exercitar mais a democracia. Eu acho isso extraordinário.
Considerando essa posição, o senhor acredita que continua sendo um homem de esquerda?
Eu me considero um homem de esquerda, e os resultados das políticas que nós fizemos são tudo o que a esquerda sonhava que fosse feito. Você veja uma coisa: é um pouco um paradoxo que eu seja o único presidente que este país teve que não tem diploma universitário e sou o presidente que mais fez universidade, e sou o presidente que mais coloquei jovens na universidade e que mais fez escolas técnicas. Fomos os que mais geramos empregos, os que mais combatemos a pobreza, os que mais exercitamos os direitos humanos e os que mais fortalecemos a democracia.
Este Palácio aqui não é um palácio em que só entrou príncipe e primeiro-ministro. Neste palácio entra sem-teto, entram todos os representantes das minorias, entram desempregados, entram todos os movimentos. Isto aqui virou um verdadeiro palácio do povo brasileiro, e eu acho que essa é uma política de esquerda não populista, porque a direita também pode ser populista, a direita pode ser populista. Agora, o problema é que você sente no jeito de falar e nos olhos, quando um dirigente é político populista ou quando ele é um político popular. São duas coisas distintas.
Qual é a diferença?
A diferença é que um presidente populista, necessariamente, não tem que ter relação com a sociedade, não tem um compromisso com a sociedade. Você faz pesquisa de opinião pública, você sabe quais são as preferências do povo e você passa a falar aquilo que aparece como resultado na pesquisa. Um político populista, necessariamente, ele não tem uma relação com o povo muito forte. Ele decide de cima para baixo e acha que está bom. Um dirigente popular, mais demorado, mas ele prefere construir de baixo para cima, ou seja, fazendo com que a sociedade participe das decisões. Essa é a forma mais extraordinária de você praticar a governança e de você exercitar a democracia.
Eu tenho dito que aqui na América Latina, em vez de nós sermos governantes, nós deveríamos ser cuidadores do povo, porque, na verdade, o que nós precisamos é cuidar de cada mulher, de cada criança, de cada pessoa, sobretudo dos mais necessitados. É cuidar, é priorizar a força que o Estado tem para ajudar aqueles que realmente precisam do Estado. Então, eu penso que isso está acontecendo aqui no Brasil.
As transformações futuras, para se consolidarem e avançar, necessitam, aparentemente, de reformas. O senhor está comprometendo, mais ou menos, com a ideia de uma Assembleia Constituinte autônoma?
Eu, dois anos atrás, recebi uma delegação de advogados aqui para discutir a reforma política, e naqueles tempos eu disse que talvez fosse necessário a gente pensar em uma Constituinte exclusiva para fazer a Reforma Política. Porque o Brasil precisa de reforma política; é inexorável que nós precisamos de reforma política, que você tenha a fidelidade partidária, que você tenha financiamento público de campanha, que você tenha partidos mais fortes, com quem você possa negociar. Quando você constrói coalizão, é uma negociação de vários partidos que vão fazer parte do governo.
E se os partidos forem fortes, você negocia com as direções do partido as votações no Congresso. E por isso que eu acho que a reforma política é importante.
Agora, o que eu sinto? Eu sinto que há muita dificuldade no Congresso em votar a reforma política. Porque as pessoas preferem manter o status quo que têm. Então, “quem já é deputado, quem já é senador, para que mudar? Vamos ficar assim mesmo”. Eu acho que é um erro para o Brasil e é um erro para credibilidade do Congresso. E isso não pode ser feito pelo Presidente da República, isso tem que ser feito pelos partidos políticos.
Então, uma das coisas que eu posso contribuir é: primeiro convencer o meu partido de que a reforma política é importante, e vou trabalhar para isso; e depois, convencer os partidos aliados de que a reforma política é importante. Se a gente construir uma maioria, a gente poderá votar a reforma política, eu diria, nos próximos dois anos.
O senhor acha que o Estado também teria que ter reformas? O senhor recebeu um Estado debilitado, em alguns aspectos. A Dilma fala que o Ministério de Minas estava reduzido a dois engenheiros, que tem muito mecanismo de controle e pouco mecanismo de operação, de atividade. Que tipo de melhoria do Estado, reforma do Estado serão necessários, além do sistema propriamente dito?
Olha, eu acho que nós precisamos cuidar de tornar o Estado brasileiro menos burocrático e mais ágil. E isso é muito fácil de falar e muito difícil de fazer, porque, para mexer nisso, você vai mexer com as centenas de corporações que, no fundo, no fundo, governam o Brasil. Porque são as instituições que têm o seu poder, seja do Poder Judiciário, seja da Receita Federal, seja da Polícia Federal, seja do Ministério Público…
Ou seja, você tem instituições poderosas que, no fundo, no fundo, são as instituições que têm poder de pressão dentro do Congresso Nacional. Eu vi na Constituinte a experiência do poder de pressão da chamada sociedade organizada. O desafio está em você propor uma reforma no Estado que não seja um estupro, ou seja, que seja uma coisa construída a várias mãos, e que as pessoas percebam que cada um tem que ceder um pouco. E eu acho que tem muita coisa para ser feita, muita, muita coisa, redefinir papel de muita coisa no Brasil.
Agora, esse é um processo em que você não pode ter a loucura de imaginar que num mandato de quatro anos você fará. Você tem que construir, eu diria, quase uma ação envolvendo todos os segmentos da sociedade, construir um grupo muito grande para ir pensando as reformas necessárias, discutir com o Congresso Nacional, discutir com um movimento social, e quando você estiver pronto, você fazer.
Eu vou te dar dois exemplos: a questão trabalhista. Eu criei um grupo de trabalho entre o movimento sindical, empresários e governo que chegou quase próximo, mas não chegou a decidir. A reforma da Previdência, tem um grupo de trabalho também criado por mim, que ele chega em algum ponto que trava.
Então, eu estou convencido, pelo que eu conheço do movimento social brasileiro, de que nós estamos num processo de amadurecimento como jamais tivemos no país, uma relação de confiança que está estabelecida entre vários atores da sociedade, que a gente pode dar passos, e eu acho que, certamente, vai depender muito da definição de prioridades se a Dilma for eleita presidente. Não sei quando… Eu estou convencido de que ela vai ser eleita presidente, mas como eu sou um democrata, eu tenho que falar… eu estou dando a entrevista na quinta-feira e a eleição será no domingo – faltam dois dias e meio –, eu sou obrigado a só poder ser contundente mesmo depois da eleição.
Mas eu estou convencido de que essa é uma coisa que ela vai ter que definir, porque um governo, Emir, – essa é uma coisa que eu aprendi também -. um governo, não pode querer fazer 500 coisas. Um mandato é muito rápido. Um mandato demora muito para a oposição, mas para quem está no governo, quatro anos não é nada. Então, ela tem que definir corretamente quais as prioridades dela e atacar aquilo, porque se tentar fazer 500 coisas, ela não consegue fazer.
Veja, o Obama, ele perdeu o primeiro ano para fazer a reforma na área da saúde. Foi aprovada no Congresso, mas até ser executada, vai levar mais um ano. Então, você não pode perder todo o seu tempo apenas numa coisa. O governo tem que utilizar a sua energia positiva para cuidar deste país 24 horas por dia, e esses debates vão fazendo paralelo do governo com os ministros, até que a gente conclua a proposta concreta para mandar para o Congresso Nacional, porque senão trava o governo.
Eu só quero perguntar, presidente, se o senhor sonha acordado. O que tem em seus sonhos ainda?
Eu sou um eterno sonhador. Acredito que o que nós fizemos no Brasil foi apenas dar início ao movimento que consolidou na consciência da maioria do povo brasileiro que é possível saber fazer as coisas diferentes do que vinham sendo feitas, que é possível fazer as pessoas acreditarem que gasto com a saúde não é gasto, é investimento, que quando você dá dinheiro para os pobres é investimento, não é só quando você empresta dinheiro para um rico, quando você dá dinheiro para um pobre é investimento.
Eu sonho que se a sociedade brasileira mantiver, para os próximos anos, a autoestima que ela tem hoje, a credibilidade que ela tem hoje no seu país e a confiança que ela tem no país, o Brasil será um país muito importante nos próximos anos. Então eu sonho com essas coisas internas para melhorar, eu sonho com a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, eu sonho com mais democratização nas instituições multilaterais e eu sonho com mais compromisso na tomada de decisões pelos países mais ricos deste mundo globalizado. Hoje, quando um país rico tiver que tomar uma decisão econômica, ele não tem que discutir apenas os benefícios e os malefícios internos, ele tem que saber qual será a repercussão da decisão em outros países que têm uma economia dependente, sobretudo neste mundo globalizado.
Eu sonho em contribuir para o desenvolvimento da África, eu sonho em ajudar a América do Sul e a América Latina a serem mais fortes, a serem mais ricas, a se desenvolverem mais rapidamente, ou seja, eu vou morrer sonhando que eu não deveria morrer. É assim.
Recentemente o senhor defendeu que é preciso melhorar as relações entre partidos, movimentos sociais e sindicatos da América Latina e da África…
Qualquer sindicato da América Latina tem mais reuniões com a Alemanha do que entre nós, ou com os americanos do que conosco mesmos. Então, o que eu quero? Primeiro, que a gente consolide, não apenas uma boa relação partidária, mas uma boa relação sindical, uma boa relação cultural, que os nossos intelectuais… Daí, a minha alegria de poder estar inaugurando a Universidade da América Latina – a Unila – que eu acho um sonho que foi realizado. A aprovação, pelo Congresso brasileiro, da criação da Universidade Brasil-África, que é outro sonho de ter uma universidade aqui para formar gestores, engenheiros, doutores para a África.
Acho que é esse tipo de integração que nós precisamos fazer: em que o Brasil pode ajudar a América Latina? Por exemplo, nós estamos plantando soja em Cuba, nós estamos plantando soja na Venezuela com tecnologia brasileira, com conhecimento tecnológico brasileiro, estamos ajudando. Nós estamos ajudando a Venezuela a construir cadeias produtivas na área de alimentos, nós estamos ajudando a fazer sistemas habitacionais como o Brasil faz, e eu acho que é nisso que nós podemos contribuir. Nós estamos levando a Embrapa para o Panamá, que é a nossa empresa de tecnologia, para ajudar no desenvolvimento agrícola da América Central.
Então, eu acho que é isso que nós poderemos fazer. Eu não tenho mais interesse de voltar para o partido, eu não quero voltar para ser quadro do partido, fazer reunião dentro do partido. Eu já estou com 65 anos de idade.
Estatisticamente, eu posso ter mais dez ou quinze anos de vida, eu acredito em estatística. Eu sei que, quando a gente completa 60 anos, cada ano, a partir dali, vale por dez. Então, eu tenho noção de tempo e eu tenho noção de que me resta menos de um quarto do tempo que eu já tive – ou um quinto – para fazer coisas que eu acredito que possam ser feitas. Então, eu tenho que definir e focar corretamente uma ou duas prioridades.
Carta Maior