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O poder em pedaços

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Com pouco mais de 30 anos de idade, na década de 60, o arquiteto e doutor Luis Humberto Miranda Martins Pereira tornou-se Luis Humberto, sujeito sem sobrenome, um artista que, ademais, decidira viver de fotografar a política, candidatando-se, com isso, à invisibilidade no Brasil da ditadura. O ex-professor acordava inquieto à noite, perguntando-se o que fizera da própria existência, ele que ajudara a fundar a Universidade de Brasília, em 1962, e agora, quatro anos depois, habitava uma espécie de limbo social. Até as pessoas que o conheciam de perto estranhavam o novo rumo. Entre elas, o parlamentar Leão Sampaio. O respeitável constituinte de 1934 procurou a mulher do antigo doutor com uma inquietação: “Vocês estão passando necessidade? Eu vi o Luis fotografando no plenário.”
Foi preciso que o tempo corresse e os responsáveis por atacar a democracia brasileira naquele período, derrotados, para que Luis Humberto se recuperasse do inferno dos outros e olhasse a si mesmo, e à sua nova carreira profissional, com aceitação. “Eu sofri de baixa estima- por ser fotógrafo naquele começo. Mas entendi, com o tempo, que me interessava o prazer, não o reconhecimento alheio”, ele diz em entrevista por telefone a CartaCapital, de Brasília, cidade que deixou poucas vezes em seis décadas, mesmo tendo nascido no Rio há 76 anos. Do Lado de Fora da Minha Janela, do Lado de Dentro da Minha Porta (editora Tempo d’Imagem, tempodimagem@uol.com.br), por ele intitulado “livro-testamento”, faz da capital brasileira um assunto com outro foco.
Nas fotos em boa dimensão, e sobre excelente papel, Luis Humberto escancara em preto e branco a palhaçada dos políticos, passeia ludicamente pela arquitetura de Oscar Niemeyer, examina a profundeza colorida do Cerrado e mostra com grande empenho as sombras do próprio quarto. Sua Brasília não é monumental. O livro em capa dura, organizado pelo fotógrafo e curador Salomon Cytrynowicz, foi idealizado a partir de uma exposição realizada por Luis Humberto na Caixa Cultural, há quatro anos. E é tão rico em sua seleção de imagens que talvez não se possa falar em um livro-testamento neste caso, como o autor deseja, antes em livro-revelação para um grande público que desconhece a trajetória do artista, funcionário de diversos veículos de imprensa em cinco décadas, como as revistas Veja e IstoÉ.
É um fotógrafo que cultua os lados, não o centro dos acontecimentos, à moda do que pregava o francês Henri Cartier-Bresson, descrente de que o fato tivesse apenas um alcance oficial de representação. Em lugar de fotografar o séquito presidencial na carruagem, por que não voltar o foco para os espectadores do desfile, amontoados atrás do cordão? “Interessante descobrir agora que Cartier-Bresson dizia isso, porque sempre fotografei desse jeito por necessidade”, Luis Humberto diz.
Ele garante não ter seguido propriamente uma escola no que se refere à fotografia, apenas ter obtido, com o passar dos anos, informações a partir da produção dos clássicos americanos e franceses. Entre seus favoritos, diz Salomon Cytrynowicz na introdução ao livro, estiveram Tony Ray Jones, o Bresson britânico, morto aos 30 anos, em 1972, o americano nascido em Paris Elliot Erwitt, de humor direto, com predileção por cachorros e gatos, e o também americano Charles Harbutt, que uma vez declarou: “Não tiro fotografias, as fotografias me tiram”.
Luis Humberto acredita buscar uma arte sem interferências, para que seu trabalho chegue o mais próximo possível da verdade. “Eu nunca repeti os outros. Andei na contramão, e não por acaso. Procurei fazer gracinha para mostrar os patetas da política como pessoas frágeis e risíveis. Se eu tinha humor, por que fotografaria de outro jeito, mudando minha maneira de ser?”
Contudo, rir no Brasil que Luis Humberto registrou entre 1966 e 1982 não era coisa simples de ser feita. Os fotógrafos daquele tempo mal tinham vez, especialmente naqueles corredores. Eles só estavam autorizados a mostrar a autoridade enfileirada e posada dos generais e seus asseclas, mesmo assim, apenas depois que os militares lhes soltassem um sinal de concordância. Era o generalato, ninguém mais, quem arbitrava o instante de clicar.
Luis Humberto passou a driblar as normas palacianas com jeitinho justamente porque levava o trabalho de fotógrafo a sério. Embora depois os editores usualmente descartassem a imagem surpreendente, publicando, no lugar delas, o instante em que o prepotente assinava o decreto, ele insistia em registrar o clique imediatamente anterior ao ato sobre a mesa, muito mais revelador de um contexto histórico. Capturou até mesmo as xícaras de café amontoadas feito estrelas de condecoração na mesa do Itamaraty, em 1976.
O fotógrafo caçava o sujeito de olhar fixo nos próprios pés, aquele do sorriso diferente, ou de olhar perdido, reconhecível no Congresso pela calvície, como o Ulysses Guimarães de 1982, e não hesitava a flagrar a cumplicidade entre os parlamentares mesmo que ela beirasse o sensual, como aconteceu naquela foto em que João Herculino, durante uma convenção do partido MDB, envolveu sedutoramente a mão esquerda de Tancredo Neves na gravata, em 1978.
Sua mania de se intrometer onde não era chamado pegava mal no País- das medalhas pregadas sobre os ternos governamentais. “Depois que eu tirava a foto, o que eles iriam fazer? Deixavam passar.” Era a Brasília dos “penduricalhos”, diz o fotógrafo, referindo-se às condecorações que enfeitavam a roupa dos pequenos e grandes repressores, encarregados de comandar brutalmente o País. Luis Humberto, contudo, não tinha censura interna para se calar diante do barulho que eles faziam. Até estranhou que, certa vez, no Setor Militar Urbano de Brasília, o irmão do presidente Ernesto Geisel, ministro Orlando, tossisse sem parar durante uma cerimônia e ninguém o socorresse. “O homem tinha enfisema e só não morreu porque desentupiu sozinho”, ele conta hoje, sem rir.
Seu mal-estar ao enxergar a política do período era constante. Em 1973, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici recebeu a imprensa e os funcionários durante seu último Natal no Palácio do Planalto, e o fotógrafo se perguntou como escapar do beija-mão a que comparecera e do qual, teoricamente, também deveria ser personagem. Ele conta que evitou o cumprimento ao seguir a fila com a máquina em punho e o olho no visor. Na sua vez de estender a mão para o presidente, tirou mais uma foto. O livro traz esse instante no qual uma fileira de militares está prestes a se curvar em sequência diante do ditador. Ao perceber que ele fotografava o homem, mas não o cumprimentava, um assessor de Médici inquiriu: “O que você tem contra o presidente?” Luis Humberto despistou com um “nada” e, por milagre brasileiro, a “afronta” não foi apurada.
Revelou-se tão ativo durante todos esses anos em que também fotografou a própria família, suas crianças pulando pela estrada como se o alegre fotógrafo francês Jacques-Henri Lartigue as observasse, que imaginá-lo parado, diante apenas das palavras, pode carecer de sentido. Mas Luis Humberto, como alguém muitos anos mais novo, gosta de renovar as ideias e os projetos. E agora terá mesmo de se aventurar por atividades diferentes, já que o mal de Parkinson impossibilita suas pernas de realizar voos de Lartigue. “Estou meio cambota. Se eu agachar para fotografar, como gostava de fazer, terei de esperar pelo bombeiro para me levantar de novo. Já dei minha contribuição e chega.”
Eis por que seu prazer tem sido o de manter o contato com o papel, não com o computador, enquanto ali deita palavras. Demonstra os assuntos sinteticamente, à moda do que a fotografia faz. Ele gosta de se debruçar sobre as questões levantadas pela arte. É autor de 65 artigos publicados em revistas e 57 em jornais sobre fotografia e questões culturais. São seus três livros publicados entre 1981 e 2000: Brasília, Sonho do Império, Capital da República, Fotografia, Universos e Arrabaldes, e Fotografia, a Poética da Banal. Escreveu à mão em 1993, e está reproduzido em Do Lado de Fora da Minha Janela, Do Lado de Dentro da Minha Porta: “A cidade é um suporte de vida, de ocorrências grandiloquentes e mesmice cotidiana. Todas reveladoras do homem. Esse mesmo homem, pretensioso, controverso, incapaz de conviver. Inventor do sonho, reinventor da morte”.
Ele conta que enfrentou um grande trabalho para selecionar as fotos do livro. “Significa muito escolher o que e como fotografar. E há mais escolha ainda na hora de editar o que fotografamos.” Lamenta que seus companheiros na tarefa tenham algo relegado as fotos que fez do Cerrado entre 1963 e 1976, componentes essenciais da paisagem de Brasília. “Era um exercício continuado do olhar sobre o Cerrado”, ele diz, repentinamente voltado ao linguajar do professor. Contudo, uma seleção de suas imagens do período, destinada a ilustrar a tese de doutorado que escreveu para a UnB em torno do aproveitamento da flora nativa em projetos paisagísticos, o primeiro trabalho realizado em cores pelo fotógrafo, permanece no livro. Bem-humorado nas fotos, Luis Humberto diz que pode ser mal-humorado na vida. E o engraçado, neste caso, é também o incomum.
Rosane Pavam