Quem escreve o futuro?
Publicado em 11 Nov, 2010 às 00h01
Assim como os Estados Unidos têm a sua Time e a Alemanha tem a sua Der Spiegel, o Brasil tem a Veja. Todas são revistas de circulação semanal e existem há um bom tempo. A Time foi publicada pela primeira vez em 1923, Der Spiegel circula desde 1947 e Veja nasceu naquele ano que, segundo a feliz expressão de Zuenir Ventura, se recusava a terminar – 1968. Todas três são importantes? Sim, são. Mais que isso, todas três nascem de matriz conservadora. E guardam outras similaridades.
Time tem como sua característica mais conhecida a sua nomeação de Pessoa do Ano. E isso vem acontecendo há mais de 80 anos. Em 1938 não hesitou em escolher para sua capa nada menos que o alemão Adolf Hitler e em 1942, Josef Stalin. Apenas sete brasileiros foram capa da revista, seis presidentes (Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Café Filho, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e Artur da Costa e Silva) e um diplomata, Osvaldo Aranha. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2010 pela revista.
Der Spiegel define-se como politicamente independente e sem nenhum compromisso, a não ser perante ela própria e os seus leitores, e não se identifica com nenhum partido ou grupo social. Esta revista está nas bancas às segundas-feiras e é distribuída em 167 países. Até mesmo alguma publicação da Organização das Nações Unidas deve encontrar dificuldades para ser acessível em tantas dezenas de países. Seguindo uma média anual, são vendidos de semana a semana 1,1 milhão de exemplares da revista alemã.
A “agenda editorial”
Veja é publicada pela Editora Abril e foi criada pelos jornalistas Victor Civita e Mino Carta. Conta com tiragem semanal superior a 1 milhão de exemplares e é sempre referida como “a revista de maior circulação” no Brasil. Mesmo que alguém desejasse esquecer esta informação, isto seria muito difícil pois é parte integrante de todas as campanhas publicitárias e institucionais da Editora Abril.
Em um país em que todo superlativo passa a ser sinônimo de importância e até de qualidade, Veja traz em suas edições temas do cotidiano da sociedade brasileira e do mundo, como política, economia, cultura e comportamento; tecnologia, ecologia e religião. Possui seções fixas de cinema, literatura e música, entre outras variedades. Seus textos são elaborados em sua maior parte por jornalistas, porém nem todas as seções são assinadas. Veja é entregue aos assinantes aos sábados e nas bancas aos domingos, mas traz a data das quartas-feiras seguintes.
É uma revista que sofre de murofobia. Foi a palavra que cunhei (mas vai que alguém já a criou antes deste observador!) para expressar que não é comum que a revista deixe de se posicionar sobre todo e qualquer assunto que esteja na agenda da sociedade brasileira. E que, mesmo que não seja parte “natural” desta agenda, a revista mesma se encarrega de colocar o que lhe interessa na ordem do dia, ou melhor, na ordem da semana. E é nesse aspecto que sugere o elevado grau de independência editorial que mora em suas contradições, que desnuda suas fragilidades e fraquezas. Toda publicação carrega consigo o viés ideológico que se manifesta através de suas principais linhas editoriais, e com Veja não poderia ser diferente.
A revista carro-chefe da Editora Abril – como parece ser de conhecimento geral – é de matriz conservadora, defende vigorosamente o neoliberalismo, a livre iniciativa do mercado, a defesa do mais amplo direito à propriedade e tudo aquilo que possa ser abarcado pelo conceito-ônibus do que se convencionou designar como “Estado mínimo”. Para levar avante esta “agenda editorial” parece considerar de bom tom ignorar, ridicularizar, ou simplesmente atacar o que possa ser considerado obstáculo à disseminação de seus ideais ou à consolidação dos mesmos junto à sociedade.
Debate incipiente
É neste contexto que encontramos reportagens, artigos de opinião e entrevistas que servem de escada para a agressão a diversos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); buscam desconstruir a biografia e o pensamento de ícones latino-americanos como Simon Bolívar, Ernesto Che Guevara; colocam sob suspeição aqueles que lutaram (ou continuam lutando) contra as ditaduras no continente, principalmente se estas estiverem ou forem consideradas dentro do espectro da esquerda; menosprezam ou forçam o descrédito para com pensadores, escritores e artistas como Eduardo Galeano, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Victor Jara e tantos outros.
Países como Cuba, Venezuela, e mais recentemente Argentina, Bolívia, Equador e alguns outros recebem cobertura marcadamente ideologizada, com crescente carga negativa sempre que fazem referência aos seus governos legitimamente constituídos ou às políticas públicas por eles implementadas. Outro ponto, não menos importante, é que países que se atrevam a desafiar a hegemonia política ou econômica dos Estados Unidos da América ou dos mais desenvolvidos países europeus automaticamente passam a receber tratamento, para dizer o mínimo, pouco lisonjeiro.
Sob o manto da neutralidade, de resto impossível, a revista Veja apresenta-se como guardiã da democracia, do Estado de direito, da liberdade de expressão. Com isso, interditam o verdadeiro debate sobre questões da cidadania não para alguns, e sim para todos os brasileiros, a questão da propriedade e da finalidade (também) social da terra, da extrema concentração da propriedade dos veículos de comunicação, os desafios advindos com políticas públicas claramente inclusivas e tantos outros temas candentes capazes de incendiar a imaginação desta e das próximas gerações. Desnecessário destacar que no Brasil, há muito tempo, os grupos empresariais que editam jornais e revistas e que detêm a propriedade dos principais canais de televisão abertos, bem como das principais emissoras de rádio, são essencialmente familiares. E não passam de pouco mais de meia dúzia de famílias, das quais destacamos as famílias Marinho (O Globo), Civita (Grupo Abril), Frias (Folha de S.Paulo), Mesquita (Estado de S. Paulo), Abravanel (SBT), Saad (Bandeirantes) e Macedo (Record).
Quando muitos pensam que os temas que aqui exponho “já renderam o que tinham que render” posso apenas constatar que, na verdade mesmo, o debate além de muito incipiente, está apenas começando. E surgirá como clamor social cada vez mais forte e vigoroso sempre que nos dispusermos a responder à pergunta-mãe de todas: “Quem está, no momento, escrevendo o futuro?”
Washington Araújo