Talita Boros
O dia nem amanheceu e o alvoroço no portão da penitenciária já é grande. Carregadas com sacolas cheias de comida,centenas de mulheres – esposas ou parentes dos presos – dão os últimos retoques no visual antes de passar pela revista.Dezenas de crianças brincam na calçada, ao lado das barracas que serviram de abrigo na noite anterior.
É dia de visita no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A excitação daquele momento esconde a dura realidade das mulheres e filhos dos mais de 1,8 mil detentos do local. Vítimas de um crime que não cometeram, as crianças mal sabem por que os pais estão naquele lugar, mas conhecem bem o estigma que carregam. Quando o domingo acaba, a maioria acha melhor mentir para os amigos da escola sobre a situação do pai. Ninguém gosta de ser apontado como “filho de bandido”. Juliana*, de 8 anos, diz para os colegas e professoras que o pai está viajando.
“Tenho vergonha de dizer que ele está preso e não quero que tirem sarro de mim”, conta baixinho,deitada no colo da mãe. O pai dela aguarda julgamento há 5 meses por assalto. Ivone*, a mãe da garota, conta que o marido era muito presente na comunidade e que todos estranharam quando ele sumiu.“Tem discriminação, por isso não contei pra quase ninguém.Não quero que minha filha sofra”, lamenta.
Silvana*, de 29 anos, trabalha com panificação e afirma não esconder no trabalho que o marido está preso. Já na escola da filha Luiza*, de 4 anos, ninguém sabe. “Não quero que as crianças debochem dela e nem que os professores olhem diferente”, conta. Luiza não sabe o motivo pelo qual o pai está na penitenciária – assalto, segundo a mãe –, mas conta que gosta de ir visitá-lo porque sente saudades. “Não pode fazer coisa errada, senão vem parar aqui”, diz a menina.
Filhos de detentos criam em torno de si uma espécie de proteção contra o preconceito, e a mentira faz parte disso, segundo a psicóloga Ada Morgenstern, supervisora do curso Psicanálise da Criança, do Instituto Sedes Sapientiae. “Além de ser um mecanismo de autodefesa, é também uma forma de proteger a imagem do pai”, explica.
O centro de detenção de Pinheiros também é o programa de fim de semana dos irmãos Pedro*, Felipe*, Rodrigo* e Fernanda*. A mãe deles, Andréa*, de 29 anos, foi a única das pessoas ouvidas pela Folha Universal a assumir a condição do marido. “Eu e meus filhos não escondemos nada. Para que mentir? Tem que falar a verdade sempre”, diz, sem hesitar.
Sueli*, de 39 anos, mãe de Larissa*, de 8, leva a filha para visitar o pai a cada 2 meses, para evitar o ambiente hostil da penitenciária. “Digo na escola que meu pai está viajando. Não quero que as meninas falem ‘teu pai tá preso e o meu não’”, diz a garota, envergonhada. “Nós não contamos, ou o tratamento muda. Ninguém convida filho de assaltante pra festinha de aniversário”, destaca Sueli.
Segundo Eduardo Luis Couto, assistente social da Penitenciária de Pracinha (SP), apesar do ambiente pesado os presos não vêem com receio a visita dos filhos e da mulher. “Para eles é muito positivo e serve como alívio. A visita é a ideia da ligação com o mundo exterior”, explica.
Abrigos
O preconceito fica ainda mais evidente e cruel com as crianças que, depois da prisão dos pais, são levadas a abrigos mantidos pelo Estado. A professora Maria José Abrão constatou, em pesquisa pela Faculdade de Educação da USP realizada em abrigos públicos de São Paulo, que os filhos de detentos sofrem abusos e ameaças, inclusive de funcionários. “A discriminação existe. Os funcionários falam para as crianças ‘você vai ser igual ao seu pai e a sua mãe’ ou ‘vocês são filhos de ninguém’”, relata.
Segundo ela, os filhos de presos são estigmatizados pelo crime dos pais. “A prisão do pai ou da mãe é extensiva à família”, diz. Segundo a professora, os familiares dos detentos não são pensados pelo sistema jurídico e carcerário. Ela relembra o caso de um adolescente de 14 anos que relatou diversas situações de preconceito na escola. “Se algo de errado acontecia, o suspeito era sempre ele”, diz.
A professora destaca que nenhuma das crianças dos abrigos pesquisados possuía noção de família ou mantinha contato com os pais presos. “Os abrigos e presídios não dialogam. Os filhos de presos são invisíveis e ficam abandonados. Ninguém sabe quantos são e onde estão”, conclui.
O Brasil tem hoje mais de 494 mil presos no sistema penitenciário e nenhum projeto exclusivo que dê assistência psicológica aos filhos e mulheres de detentos. Em todo o País, há apenas seis creches ou berçários em presídios masculinos, que abrigam 145 crianças.
Marcus Alvez Rito, coordenador de Reintegração Social e Ensino do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), reconhece que a área é carente.
“Cada estado mantém seus programas independentes. Os projetos de reintegração social do preso incluem a família, mas não temos nada específico para esta finalidade”, explica. Rito acredita que a sensibilização da sociedade é importante para que a discriminação diminua. “São necessárias atividades que aproximem a comunidade do sistema penitenciário. Projetos para reintegrar os presos aos poucos diminuem esse preconceito”, acredita.
Segundo o assistente social Eduardo Couto, os problemas no auxílio psicológico e social começam com quem está do lado de dentro dos presídios. “Na penitenciária onde eu trabalho há três assistentes sociais para atender 1,2 mil presos. Isso significa que cada profissional é responsável por 400 detentos”, conta. “Tem preso que entra e sai e nós nem conhecemos”, completa.
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