Hoje, 13 de Dezembro, é um triste aniversário. Quarenta e dois anos atrás, a ditadura militar brasileira implementava o Ato Institucional Nº 5 – vulgo AI-5, endurecendo o regime e fazendo-o merecedor da alcunha de anos de chumbo.
Sim, a ditadura foi aqui. Dizê-la branda faz parte unicamente da fantasia dos que hoje têm medo da verdade. Daqueles que hoje têm medo de que seus netos e bisnetos saibam letra por letra o que eles fizeram no milênio passado.
Era 1969 e o AI-5, com um ano de vida, vigorava a pleno vapor. Meu tio, então um jovem como eu, gostava de ir aos cinemas, que existiam aos montes no Rio de Janeiro. Naquele ano, a caça aos comunistas, indiscriminadamente chamados de “terroristas”, estava a mil por hora.
Meu tio não tinha envolvimento político com direita, esquerda, centro, nada! Tinha, sim, a infelicidade do destino de ser parecido com um comunista muito procurado e foi isso o que o fez ser seguido até o cinema.
Os militares – aqueles que, há quem diga, “não queriam o golpe” – provavelmente assistiram à sessão junto com ele, de tocaia. Ao sair, enquanto esperava o ônibus para voltar para casa, foi abordado e começaram a perguntar-lhe sobre questões políticas. Do alto de sua inocência, sem sequer imaginar o que se passava naquele momento, limitou-se a balançar a cabeça afirmativamente. Assim, lhe mostraram a carteira do DOPS (“Departamento de Ordem Política e Social”, nome pomposo para repressão) e lhe “convidaram” a entrar em um carro.
Era tão ingênuo que, perguntado a que grupo pertencia, disse pertencer a um grupo folclórico – e era verdade. Obviamente, acharam que era deboche. Mas não era.
Sem nada entender, antes de entrar no carro, disse ainda que precisava falar com sua mãe. Na cabeça, ele já trazia uma cicatriz profunda que os militares certamente fingiram não ver. A cicatriz se deve a uma lesão cerebral por atropelamento na infância, o que o levava a tomar remédios para controlar a epilepsia. Ele trazia estes medicamentos no bolso, sendo este mais um “motivo” para aqueles que buscavam “motivos” a qualquer preço. Em suma, resolveram “entender” que, além de comunista, ele era viciado.
Ele ficou cinco dias desaparecido. Encontrava-se nu, trancafiado numa cela com luz constante. Apanhou muito e conta que implorava para que não batessem em sua cabeça. Vão apelo de um inocente que recebeu choque elétrico e lavagem cerebral, agravando os problemas neurológicos que já tinha.
A família moveu céus e terras e conseguiu encontrá-lo graças, primeiramente, à intuição de sua mãe que pediu para que o procurassem no DOPS. Os militares negaram que ele estivesse lá, mas ela sabia que ele estava. Ela tanto bateu nesta tecla que um tio dele e um amigo da família conseguiram chegar a um alto funcionário do DOPS. Tio, amigo e alto funcionário, os três eram maçons e, naquele momento, foi o que os uniu. Não tenho conhecimento suficiente para fazer juízo de valor sobre a maçonaria, mas tenho a quase certeza de que sem ela jamais a inocência de meu tio teria sido provada e ele seria mais um para a larga estatística de mortos daquele período.
Ele sobreviveu sabe-se lá como. Mas ficaram seqüelas traumáticas visíveis. Por exemplo, quando ele hoje se depara com uma blitz, a primeira coisa que faz é pegar os documentos, se desespera sempre achando que vai ser preso e viver aquilo tudo de novo. Talvez esta preocupação se explique porque, naquela época, os militares, quando o libertaram, queriam a todo custo ficar com os documentos dele. Coisa que o trio também conseguiu impedir. Mas talvez ele ache que ainda ficou por aí algum registro.
E vai convencê-lo… Só quem viveu o inferno e tem até hoje a sensação de impunidade sabe as razões pelas quais ainda não consegue se sentir seguro nas ruas deste país.
Quem agora é capaz de me convencer que aqueles militares que em nenhum momento deram chance de defesa a um inocente e fizeram com ele tudo o que fizeram merecem ser hoje vovôs que levam impunemente os seus netos à pracinha?!?!?! Pelo amor de Deus, algum dia o Brasil tem que fazer justiça e oferecer um mínimo de paz a todos os sobreviventes dos porões da ditadura, aos seus familiares e aos familiares dos mortos. Enterrados embaixo de imponentes quartéis ou sabe-se lá onde…
Será que alguém poderá ser capaz de me dizer que é justo que, por exemplo, um sujeito que era conhecido como “Tenente Mata Rindo” continue rindo por aí, sabe-se lá rindo de que, mas solto – livre, leve e solto? É este tipo de gente que os comandantes militares de hoje e nossos homens de toga defendem contra a reinterpretação da Lei de Anistia e a instalação da “Comissão da Verdade”?
Resta a esperança de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que prometeu emitir até o começo da próxima semana sentença a respeito dos crimes cometidos pela ditadura brasileira, condene o STF (Supremo Tribunal Federal) brasileiro por conta da absurda decisão de que os torturadores têm direito à anistia. E que isto surta efeito.
Porque, seja nas mãos de militares ou de civis, não tenho dúvidas de que ainda hoje esta “página infeliz de nossa história”, que Chico e outros tantos narraram em prosa, verso e música, permanece também legível em anotações das mais diversas e documentos oficiais. Este material têm que vir à tona e os militares algozes, ainda vivos, têm que ser submetidos a julgamento público.
Isso não é vingança, é justiça. Vingança seria pagá-los na mesma moeda e colocar vovôs no pau-de-arara. Claro que não é este o caminho. Mas, enquanto não acertarmos contas com nossa história, tal como já fizeram outros países da América Latina – enquanto os jovens de hoje e de amanhã não tiverem o direito de saber o que aconteceu ontem – nosso país não poderá dizer-se um país democrático.
Ana Helena Tavares