Se para nós, os privilegiados do asfalto, o cotidiano no Rio de Janeiro já é um salve-se quem puder em meio a arrastões, balas perdidas, seqüestros-relâmpago e similares, fico imaginando o que deve ser a vida das pessoas humildes que estão onde a polícia e a saúde não chegam.
Alma Lavada
Semana passada, depois de ser agredida pelo ex-namorado, que entrou em sua casa, quebrou o que quis e bateu nela, minha amiga Neusa, que vive numa comunidade na zona Oeste do Rio, teve uma alta de pressão e precisou correr para o hospital.
Com a ajuda das vizinhas, teve que pegar condução e correr ao bairro ao lado, porque o antigo hospital que havia próximo à sua comunidade foi fechado meses atrás, por falta de higiene e pela má condição do prédio. E, segundo ela, não parece que vai voltar à ativa tão cedo.
Depois de ser atendida de emergência e amargar uma transferência para outro hospital, dentro de uma ambulância que levava não um paciente, mas oito, espremidos em volta da maca na qual uma velhinha teve a sorte de se deitar, Neusa passou quatro dias internada sofrendo o medo de voltar para casa, porque onde mora não existe delegacia, polícia ou guarda municipal.
E se o ex-namorado aparecer?
Quando finalmente voltou ao lar, amparada pela vizinhança, soube que um dos moradores havia pedido ajuda aos seguranças da área, também conhecidos como “milicianos”, e recebeu a notícia de que estão de olho na casa dela. Mesmo sabendo que alguns destes “seguranças” são ex-policiais expulsos da corporação por terem cometido crimes, Neusa afirma que os moradores recorrem a eles como, no passado, recorriam aos traficantes.
— Estuprador eles matam. Ladrão, eles cortam os pés, as mãos e tacam fogo no corpo. Marido que bate em mulher leva uma surra, se fizer de novo é expulso de lá. Ou morre.
Apesar de espalharem o medo, tais “seguranças” acabam ganhando a simpatia dos moradores, numa inversão de valores e de papéis que faz das comunidades um mundo à parte deste em que vivemos.
— Eles não andam com arma mas não deixam entrar ladrão nem viciado na comunidade. O mercado foi assaltado e eles chegaram antes da polícia e conseguiram pegar os ladrões. Ouvi quando um gritou “dá a última forma!”, que quer dizer pra matar, mas aí avisaram que a polícia já vinha chegando. Eles entregaram os caras para os policiais.
Depois de viver numa outra comunidade, de onde fugiu após ser violentada a noite inteira por milicianos, que também se apossaram de sua casa, Neusa conta que lamenta a inexistência de uma Delegacia da Mulher em sua área.
— Fui muito bem atendida na Delegacia da Mulher. Lembro que me ajudaram a entrar no carro, pra ir fazer o exame de corpo de delito. Tive até atendimento psicológico. Cheguei a fazer reconhecimento dos bandidos, mas não levei o processo adiante porque tive medo de represálias. Quem é que ia me defender se eles voltassem? Só se eu ficasse morando na delegacia!
Desta vez, ela não pensou em recorrer à polícia, porque, caso chegassem à sua casa, já não haveria flagrante, ou seja: nada poderia ser feito. O jeito, então, é correr para o outro lado.
— É uma pena, eu preferia ir à polícia, porque assim não precisaria pagar nada a ninguém. Porque lá, nada é de graça. A gente fica devendo, e se um dia eles pedirem pra eu pagar o favor, não vou poder dizer não. De um jeito ou de outro, perdi meu sossego.
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