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Crime e Legalidade: A polícia aquém do espanto

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A mídia volta a esquecer a questão da segurança pública

A “operação de guerra” na Vila Cruzeiro e no Morro do Alemão, no final de novembro, acabou midiaticamente consagrada como um grande feito, exatamente na linha ditada pelo marketing dos governos estadual e federal. Houve ressalvas quanto à truculência da ação bélica e seus desdobramentos, vocalizadas por moradores e por entidades de direitos humanos. Houve estranheza diante da fuga dos bandidos cercados (teoricamente, pelo Exército). Questionaram-se o número de mortos, dos quais não se sabe nem o nome, e a ausência de laudos do Instituto Médico Legal. Constata-se que a pacificação não coíbe o tráfico, apenas muda seus métodos. Há posições inteiramente contrárias ao assalto armado. Mas até segunda ordem o que prevalece é uma narrativa triunfalista. Não era para menos. Num dos últimos dias de dezembro, e de seu mandato, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi andar de teleférico no Alemão, compromisso que já estava em sua agenda antes da invasão das favelas locais.

Com a sabedoria da visão retrospectiva, não é difícil imaginar por que o Alemão e a Vila Cruzeiro foram escolhidos como alvos da “limpeza”. Não é que o presidente e o governador não pudessem ir a favelas redutos de traficantes armados. Eles já o haviam feito, cercados do indispensável aparato de segurança. Mas tem outro significado político testar as gôndolas suspensas do Alemão num contexto de “paz”.

E, como se sabe, a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 são os verdadeiros motores de toda essa política. Não é por mera coincidência que Sérgio Cabral Filho promete para 2014 a “vitória” sobre “o tráfico”.

Modelo questionado
O primeiro domingo de 2011 [2/1] trouxe importante reportagem da Folha de S.Paulo sob o título “Modelo de UPP do Rio falha em Medellín”. Escreve o repórter Rodrigo Rötzsch que “o combate à violência em Medellín é modelo inspirador assumido da política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro”. E constata que, após uma queda de 184 para 33,8 homicídios por 100 mil habitantes entre 2002 e 2007, a taxa de homicídios voltou a subir em Medellín, chegando a 94,5 em 2010.

O que é explicado em análise de Paula Miraglia, diretora-geral do Centro Internacional para a Prevenção do Crime (ICPC, na sigla em inglês), pelo caráter dinâmico da criminalidade. “As políticas, portanto, têm de ser capazes de acompanhar mudanças e vislumbrar o longo prazo”, diz Miraglia. E arremata: “Fica claro que intervenções tópicas têm limitações. Em algum momento, o Rio terá de fazer transformações estruturais”, antes definidas, no mesmo texto, especificamente, como “superar a cisão entre favela e asfalto”, etapa essencial do processo de verdadeira pacificação.

Todos prometem combate à corrupção
Entre as mudanças estruturais há muito reclamadas está a reforma das polícias. Não se trata apenas de corrupção, mencionada pelo novo ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, em sua posse. No noticiário de segunda-feira [3/1], ele repetiu o que muitos antes dele já disseram (o que não lhe tira o mérito): disse que será central em sua pasta o combate à corrupção, “venha de onde vier”.

O drama é antigo. Em depoimento ao Museu da Pessoa, Gilza Guerra de Figueiredo relata que o marido, João Eduardo Barbosa Figueiredo, começou a se desencantar no dia da formatura como detetive de polícia, antes de 1945:

“Veio tão desanimado, porque disse que quem foi entregar foi Ademar de Barros, que era o interventor, e tinha uma comissão, que já era de investigadores, de escrivães, de delegados, que vinham pedir aumento. O Ademar de Barros falou: ‘Mas vocês vêm pedir aumento? Vocês têm a gazua’. Ele pegou justamente o distintivo do meu marido e falou: ‘Olha aqui, vocês têm a gazua, vocês não precisam de aumento!’ Aquilo, para ele… acabou. Quer dizer, gazua é o que o ladrão usa para entrar, para arrombar porta. Ele foi frustrado acho que desde o primeiro dia na polícia.” Negócios de uma polícia criminosa
Espera-se que Cardozo tenha mais sucesso do que seus antecessores no Ministério da Justiça. E que consiga fazer parcerias para ajudar os estados a lidar com a criminalidade de suas polícias. Corrupção é crime, e uma vez instalado no território do crime o policial tende a perder qualquer noção de limite. Deixam de funcionar os valores morais. Em seu lugar entra o cálculo frio de custo e benefício.

Na batalha pela vigência das leis, há um empecilho que trafega entre o policial criminoso e o cidadão, com a indispensável participação da mídia: a falta de espanto e protesto, talvez ditada pelo medo, ou pela perplexidade, ou por ambas as coisas.

Relembremos, para ressaltar o papel negativo da polícia bandida, palavras ditas ou escritas por estudiosos logo após a “operação” do Alemão.
Michel Misse, professor da UFRJ:

“A reprodução e o fortalecimento do tráfico de varejo no Rio sempre dependeram da oferta de proteção de policiais corruptos às redes de facções.” Luiz Eduardo Soares, professor da Universidade Estácio de Sá:
“Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. É só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.” A sucessão de notícias sobre crimes praticados por policiais cai numa espécie de vazio conformado. Não suscita campanhas de mídia capazes de influir em políticas públicas. Mesmo quando há ampla informação, caso da pesquisa sobre armas no país divulgada em 20 de dezembro. O estudo da entidade Viva Rio em parceria com o Ministério da Justiça mostrou que boa parte das armas ilegalmente em poder do público são vendidas por policiais civis, militares e bombeiros, que têm a prerrogativa de comprá-las a baixo preço para uso particular. Não se mencionou a possibilidade de rever a legislação que lhes dá esse direito. Muitas dessas armas são vendidas a bandidos.

“Rei da cracolândia”
Mesmo quando as notícias sobre malfeitos policiais perduram algum tempo, não parecem robustecer uma tomada de consciência que tenha efeitos práticos. Nisso a mídia tem sua parcela de responsabilidade, por inconstância. E não faltam episódios “sensacionais”, chocantes, que “vendem jornal”. Mas, quase sempre, são notícias que passam voando.

Em 15 de outubro, o repórter Marcelo Godoy noticiou no Estado de S.Paulo que a prisão, em Portugal, de um investigador do Departamento de Narcóticos paulista (Denarc), Walter José Bernal, acusado de integrar um grupo que desviava cocaína apreendida, recolocou na ordem do dia as ações do grupo, objeto de investigação em 2008:

“(….) O que era desviado era vendido a bandidos do Primeiro Comando da Capital. As grandes apreensões seriam destinadas ao mercado externo. A droga seria mandada ao exterior pelos policiais por meio de seus contatos com o submundo do tráfico. Já as pequenas quantidades abasteceriam a cracolândia. Um dos investigados seria conhecido como ‘Rei da Cracolândia’. Os policiais mantinham grandes quantidades de dólares para negociar a compra de cocaína. Na época, a apuração não conseguiu comprovar o envio da droga ao exterior, mas provocou duas denúncias criminais contra policiais sobre o suposto desvio de drogas do Denarc.”A reportagem foi editada discretamente e depois não se ouviu mais falar do assunto.

Matadores de aluguel
Em 29 de dezembro, reportagem de André Caramante ganhou na Folha o título “Ex-policiais são suspeitos de assassinatos de policiais”. Abertura da matéria:
“Um grupo de cerca de dez ex-policiais militares e civis de São Paulo é investigado sob a suspeita de cometer assassinatos encomendados a um custo que varia de R$ 30 mil a R$ 50 mil por trabalho.

O Ministério Público Estadual acredita que os crimes estejam ligados a jogos de azar, como bingos, caça-níqueis e o jogo do bicho. As vítimas seriam tanto policiais e ex-policiais que combatiam a prática ilegal como os que participavam dos esquemas.”

Segundo a polícia, um PM preso, Gilberto Marques Berg, confessou 54 mortes.

Feito o registro, o assunto desaparece do noticiário sem que a opinião pública seja estimulada a se conscientizar da verdadeira dimensão da criminalidade policial, parte essencial da criminalidade como um todo. Talvez uma campanha maciça de opinião possa mudar esse panorama.

Nova delimitação de fronteiras
Pesquisas de opinião mostram que a insegurança pública ganhou lugar de destaque na agenda da população. Em medida substancial, modificar o quadro atual requer o saneamento das polícias, processo longo e doloroso que não terá possibilidade de êxito sem apoio ativo da população, que depende da mídia para se informar e para formar opinião.

No Rio de Janeiro, a primeira sacudidela foi dada há 28 anos, ainda sob a ditadura militar, no primeiro governo de Leonel Brizola, quando o comandante da PM deixou de ser um oficial do Exército e para a Secretaria de Polícia e Justiça foi nomeado Nilo Batista, advogado de presos políticos. A política de cessação da truculência não foi complementada por uma ação policial eficaz. O quadro da insegurança se agravou a tal ponto que Moreira Franco, candidato vitorioso ao governo do estado em 1986, usou e abusou do tema em sua campanha.

Só em 1995 esforços explícitos de saneamento da polícia voltaram a ser feitos, pelo delegado Hélio Luz. Ele foi demitido pelo governador Marcello Alencar em 1997 e a polícia fluminense retornou à truculência plena, sob o comando do general da reserva do Exército Nilton Cerqueira.

Nova tentativa foi feita quando o antropólogo Luiz Eduardo Soares coordenou a área de segurança do governo de Anthony Garotinho, em 1999 e 2000. A mais recente está em curso desde 2007 sob o comando do delegado José Mariano Beltrame, oriundo da Polícia Federal. Os bons propósitos de Beltrame estão permanentemente sob a ameaça do marketing político do governador Sérgio Cabral Filho, que teve o mérito de nomeá-lo. E sob a ameaça de interesses escusos ou criminosos arraigados nas polícias Civil e Militar.

Os meios de comunicação estão diante de uma nova tarefa: redefinir com clareza, no noticiário, as fronteiras entre crime e legalidade. Elas há muito deixaram de respeitar os limites das corporações policiais. O território é pantanoso e arriscado. O que dá alento é a convicção de que, ao se aventurar nele, cumpre-se uma missão social prioritária.

Mauro Malin