Victoria chegou a se assustar quando soube da sua real origem |
“Me chamaram María Sol Tetzlaff Eduartes, nascida em 28 de maio de 1976 em Boulogne, San Isidro (cidade da província de Buenos Aires), como filha do coronel Herman Antonio Tetzlaff e de sua esposa, María del Carmen Eduartes. Eu nunca tive dúvidas de que não era María Sol, me diziam que era filha deles”, explicou Victoria Montenegro, respondendo indagação feita pelo “fiscal” (procurador/promotor) Martín Niklison – “A senhora viveu com outra identidade durante muitos anos?” – em audiência num Tribunal Federal de Buenos Aires, no último dia 25, em julgamento sobre o roubo de bebês de presos políticos desaparecidos no período da ditadura (1976-1983).
(Na verdade, Victoria nasceu em 31 de janeiro de 1976. Seus pais eram Hilda Ramona Torres e Roque Orlando Montenegro, dois militantes da Juventude Peronista (JP) e em seguida do Exército Revolucionário do Povo (ERP). Treze dias depois do seu nascimento, um grupo da repressão entrou na casa onde viviam, em Boulogne. Herman Tetzlaff era o chefe do grupo, um militar que ocupou destacados cargos nas forças repressivas. Se apropriou de Victoria seis meses depois da invasão de sua casa, em cuja operação ele mesmo assassinou seu pai, conforme confessou mais tarde).
– Que versão lhe deram? – continua o procurador.
– Eu sempre tive dúvidas, mas sobre o horário em que havia nascido. O que perguntava à minha apropriadora era a hora: sabia que 29 de maio era o Dia do Exército. Me diziam que dia 28 Herman teve um desfile militar em San Isidro, ela se sentiu mal e eu nasci na Clínica do Sol.
– Quando apareceram as dúvidas de que não seria filha deles?
– Quando tinha nove anos, calculo, chamam Herman a uma Vara Criminal de Morón. Um dia eu o acompanho. Entro com ele no gabinete do juiz e o juiz pergunta se não era melhor que eu esperasse fora. Ele disse que não. O juiz tira do arquivo um processo e lhe diz que as “velhas” (“abuelas” e “madres”, avós e mães da Praça de Maio) já estavam começando a incomodar. Que ficasse tranqüilo, que o encarregado de tudo era outro colega, mas que tomasse conhecimento do que estava ocorrendo.
Isso aconteceu em torno de 1989, então ela devia ter cerca de 13 anos. Victoria não se lembra do nome do juiz, mas sabe que nesse momento começou o processo contra o coronel Herman Tetzlaff.
“Pensava que os desaparecidos eram mentira, uma invenção das ‘Abuelas’”
– Até então o que eu sabia era que na Argentina houve uma guerra, nesse momento eu considerava Herman como meu pai, para mim a subversão estava se vingando deles que haviam sido soldados; que os desaparecidos eram mentira. Pensava que não eram pessoas físicas, e sim uma invenção das ‘Abuelas’ (Avós da Praça de Maio)”.
Toda vez que aparecia na TV alguma informação que não batia com a versão sustentada na família, Tetzlaff sentava-se com ela para doutriná-la. Lhe dizia que a primeira coisa que a subversão fazia era atacar a família, a célula vital de uma sociedade sã. Que as “Abuelas” disseminavam as dúvidas para criar medo.
– Por isso, para mim, tudo eram mentiras: eu era filha dele e estava convencida de que tudo era uma invenção.
Tetzlaff era enorme: media dois metros e pesava 145 quilos. Era louro como sua mulher, descendentes de alemães. Viviam rodeados de policiais e de militares. Falava da causa:
– A causa não sei o que era exatamente, mas era uma bandeira celeste e branca (cores da bandeira argentina); eles eram os bons, havia uma causa nacional; era o cheiro de couro, as botas, a família cristã, a missa, jantar fora porque Mary (apelido da esposa) não cozinhava, para mim essa era a família: os restaurantes cheios e Herman que terminava as conversas com a 45 encima da mesa dizendo: ‘Eu tenho sempre razão, e mais ainda quando não a tenho’.
Quando Victoria completou 15 anos, Tetzlaff foi detido pela primeira vez:
– Herman estava muito nervoso. Um dia me chama e me comunica que já havia um processo a cargo de (o juiz Roberto) Marquevich, que era um juiz montonero, que as “Abuelas” estavam pelo meio, que o mais provável era que me tirassem sangue para comparar com o Banco Genético que na realidade era manejado pelas “Abuelas”.
Foi então advertida pelo suposto pai que iam dizer que ela era…
– …filha da subversão, assim é que com certeza depois venham e te tiram de casa. Enquanto isso, eu dizia que não: que aconteça o que acontecer, ia ficar com ele; ele me agradeceu e me disse que não esperava outra coisa de mim.
“Me tomou um terror, porque era filha da subversão”
O resultado do exame de DNA deu o esperado: ela não era filha do coronel e sua mulher.
– Me disseram que em 99% eu não era filha deles, mas eu disse que ficava com esse 1%, porque sim era filha deles. Lhes dizia que eram todos uns subversivos, porque pensava que era filha deles.
Tetzlaff, que já morreu, desta vez ficou preso somente três meses. A Justiça pediu nova mostra de sangue para tentar identificar seus pais. Ela se negou e a questão chegou até a Corte Suprema, que respaldou sua recusa. Victoria levou a sentença da Corte Suprema ao coronel:
– Me lembro que Herman me esperava num restaurante próximo, e eu fui lá e levei a sentença. Me felicitou: ‘Muito bem, minha filha’, me disse. Dei a ele e me lembro que quando me sentei creio que foi o início do momento de começar a tomar conhecimento da outra história. Pensei: agora me deu um sinal se quero saber de algo”.
Finalmente, o desfecho: os avanços tecnológicos fizeram com que não fosse mais necessária nova mostra de sangue. O juiz Marquevich a chamou para dizer-lhe qual era sua verdadeira família.
– Me tomou um terror, porque era filha da subversão, esse foi o primeiro medo.
Hoje parece perfeitamente integrada à sua nova vida
Atualmente, Victoria Montenegro, 35 anos, casada, três filhos, lamenta não ter conhecido seus avós e uma tia (além dos pais, evidentemente), mas parece perfeitamente integrada à sua nova vida, inclusive dentro do espaço político e ideológico da democracia, talvez até da esquerda. Tive esta impressão ao vê-la e ouvi-la no programa “6, 7, 8” de Visión 7, TV Pública (estatal) da Argentina, na terça-feira, dia 26, no mesmo dia em que o excelente jornal argentino Página/12 publicou reportagem de capa com ela. Esta minha matéria é baseada nesta reportagem, da qual, além das declarações entre aspas de Victoria, me apossei até de pequenos trechos do texto de Alejandra Dandan, que assina a reportagem.
O destaque principal da matéria de Página/12, no entanto, não é o drama enfrentado por Victoria na descoberta de sua verdadeira família. De fato, um drama já meio corriqueiro num país em que se estima a existência de 500 recém-nascidos roubados pelos repressores da ditadura (103 já tiveram sua verdadeira identidade restituída). O enfoque principal da reportagem foi a denúncia feita por Victoria sobre a cumplicidade do procurador Juan Martín Romero Victorica com Tetzlaff, tema de nova matéria de capa do jornal no dia seguinte. Romero Victorica continua tendo posição de destaque no Poder Judiciário e o assunto deve render, no cenário de avanço da sociedade argentina no sentido de apertar o cerco contra os cúmplices civis da ditadura.
Por Jadson Oliveira