Ao contrário do que se diz, a lei não vai patrulhar ninguém |
Vale lembrar que nosso estado é de Direito, e que garante a liberdade individual dos sujeitos, desde que isso não fira com as leis vigentes. As leis, servem para criar parâmetros ou limites para a liberdade individual, dessa forma assegurando a liberdade e o bem estar mútuo da sociedade. A não não é uma uma construção de regras ao acaso, não é fruto de vontades alheias, ela é resultado de medidas que, sobre o contexto de sua criação, tem por objetivo garantir os direitos individuais. A lei não deve ser constante, pois as sociedades não são constantes, os conceitos, valores e movimentos mudam, surgem novas tecnologias, e por essas e outras razões é necessária uma constante re-leitura das leis.
O Projeto lei em questão é um exemplo disso. E por isso merece atenção e leitura.
Vamos fazer uma breve análise:
Bem, vamos consultar o código penal:
“Injúria
Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
§ 3: Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:”
Atualmente, se você cometer injúria e esse ato consistir de elementos de raça/cor/etnia/religião/origem/idoso/portador de necessidade, a pena é agravada.
“Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:”
Claramente percebe-se que o Projeto Lei tem por objetivo incluir dentro dos atuais agravantes de injúria o sexo/orientação sexual/identidade de gênero. Ou seja, o projeto lei não tem caráter discriminatório, ele não concede um tratamento diferenciado ao preconceito por orientação sexual (como no caso da homofobia) e ao preconceito por religião (como preconceito contra religiões de origens africanas), por exemplo.
- Ainda não há proteção específica na legislação federal contra a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero;
- Por não haver essa proteção, estimados 10% da população brasileira (18 milhões de pessoas) continuam a sofrer discriminação (assassinatos, violência física, agressão verbal, discriminação na seleção para emprego e no próprio local de trabalho, escola, entre outras), e os agressores continuam impunes;
- Por estarmos todos nós, seres humanos, inseridos numa dinâmica social em que existem laços afetivos, de parentesco, profissionais e outros, essa discriminação extrapola suas vítimas diretas, agredindo também seus familiares, entes queridos, colegas de trabalho e, no limite, a sociedade como um todo;
- O projeto está em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário: “Artigo 7°: Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”;
- O projeto permite a concretização dos preceitos da Constituição Federal: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação […] / Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”;
- O projeto não limita ou atenta contra a liberdade de expressão, de opinião, de credo ou de pensamento. Ao contrário, contribui para garanti-las a todos, evitando que parte significativa da população, hoje discriminada, seja agredida ou preterida exatamente por fazer uso de tais liberdades em consonância com sua orientação sexual e identidade de gênero;
- Por motivos idênticos ou semelhantes aos aqui esclarecidos, muitos países no mundo, inclusive a União Européia, já reconheceram a necessidade de adotar legislação dessa natureza;
- A aprovação do Projeto de Lei contribuirá para colocar o Brasil na vanguarda da América Latina, assim como o Caribe, como um país que preza pela plenitude dos direitos de todos seus cidadãos, rumo a uma sociedade que respeite a diversidade e promova a paz.
Essas críticas, em sua maioria, não têm base laica ou objetiva. São fruto de uma tentativa equivocada de transpor para a esfera secular e para o espaço público argumentos religiosos, principalmente bíblicos. Não discutem o mérito do projeto, sua adequação ou não do ponto de vista dos direitos humanos ou do ordenamento legal. Apenas repisam preconceitos com base em errôneas interpretações religiosas.
Contudo, algumas críticas tentam desqualificar o projeto alegando inconsistências técnicas, jurídicas e até sua inconstitucionalidade. São críticas inconsistentes, mas, pelo menos, fundamentadas pelo aspecto jurídico. Por respeito a esses argumentos laicos, refutamos, abaixo, as principais objeções colocadas:
1. É verdade que o PLC 122/2006 restringe a liberdade de expressão?
Não, é mentira. O projeto de lei apenas pune condutas e discursos preconceituosos. É o que já acontece hoje no caso do racismo, por exemplo. Se substituirmos a expressão cidadão homossexual por negro ou judeu no projeto, veremos que não há nada de diferente do que já é hoje praticado.
É preciso considerar também que a liberdade de expressão não é absoluta ou ilimitada – ou seja, ela não pode servir de escudo para abrigar crimes, difamação, propaganda odiosa, ataques à honra ou outras condutas ilícitas. Esse entendimento é da melhor tradição constitucionalista e também do Supremo Tribunal Federal.
2. É verdade que o PLC 122/2006 ataca a liberdade religiosa?
Não, é mentira. O projeto de lei não interfere na liberdade de culto ou de pregação religiosa. O que o projeto visa coibir são manifestações notadamente discriminatórias, ofensivas ou de desprezo. Particularmente as que incitem a violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Ser homossexual não é crime. E não é distúrbio nem doença, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). Portanto, religiões podem manifestar livremente juízos de valor teológicos (como considerar a homossexualidade “pecado”). Mas não podem propagar inverdades científicas, fortalecendo estigmas contra segmentos da população.
Nenhuma pessoa ou instituição está acima da Constituição e do ordenamento legal do Brasil, que veda qualquer tipo de discriminação.
Concessões públicas (como rádios ou TV’s), manifestações públicas ou outros meios não podem ser usados para incitar ódio ou divulgar manifestações discriminatórias – seja contra mulheres, negros, índios, pessoas com deficiência ou homossexuais. A liberdade de culto não pode servir de escudo para ataques a honra ou a dignidade de qualquer pessoa ou grupo social.
3. É verdade que os termos orientação sexual e identidade de gênero são imprecisos e não definidos no PLC 122, e, portanto, o projeto é tecnicamente inconsistente?
Não, é mentira. Orientação sexual e identidade de gênero são termos consolidados cientificamente, em várias áreas do saber humano, principalmente psicologia, sociologia, estudos culturais, entre outras. Ademais, a legislação penal está repleta de exemplos de definições que não são detalhadas no corpo da lei.
Cabe ao juiz, a cada caso concreto, interpretar se houve ou não preconceito em virtude dos termos descritos na lei.