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Estreitando o abismo num país de ricos e miseráveis

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O contraste social ainda é imponente, apesar dos avanços
O lançamento do programa Brasil semmiséria, na semana passada, pela presidente Dilma Rousseff, propõe umexercício de imaginação. “Já pensou quando acabarmos de vez com amiséria?”, dizem as peças publicitárias sobre a nova estratégiagovernamental. As propagandas associam ainda o crescimento do país ao fim dapobreza extrema, meta que o governo pretende cumprir. São consideradas comomiseráveis absolutas as pessoas que vivem com até R$ 70 reais mensais. Pelosdados divulgados pelo governo no lançamento do programa, há 16,2 milhões depessoas nessa situação e outras 28 milhões em situação de pobreza. Pelos dadosdo Programa para as Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), de 2010, oBrasil está entre os sete países mais desiguais do mundo, apesar de estartambém entre os sete gigantes da economia mundial. Os dados mostram que ascontradições e os desafios são muitos. É possível que o exercício de imaginaçãoproposto pelo governo federal se torne realidade?
De acordo com o decreto que institui o Brasil semmiséria, o programa tem três objetivos, todos destinados à populaçãoextremamente pobre: elevar a renda per capita; ampliar o acesso aos serviçospúblicos; e propiciar o acesso a oportunidades de ocupação e renda, por meio deações de inclusão produtiva.
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Constituem ações do programa a expansão depolíticas já existentes como ‘Bolsa-família’, ‘Luz para todos’, ‘Rede Cegonha’e ‘Brasil Alfabetizado’, entre vários outras. A inovação, segundo o governo,está ,sobretudo, no fato de que pessoas que até então não são contempladas pornenhuma dessas políticas por fazerem parte de “uma pobreza tão pobre quedificilmente é alcançada pela ação do Estado” passarão a ser, já que seráfeita uma busca ativa para encontrá-las. Estão previstas também açõesdiferenciadas para a cidade e para o campo, onde a previsão é garantirassistência técnica. “Assim, todo o país vai sair lucrando, pois cadapessoa que sai da miséria é um novo produtor, um novo consumidor e, antes detudo, um novo brasileiro disposto a construir um novo Brasil, mais justo e maishumano”, diz a apresentação do programa.
Para o economista Marcio Pochmann, do Instituto dePesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa é uma inovação na políticasocial brasileira por estabelecer uma linha de pobreza para a qual foramdefinidas metas de atuação da política pública. Pochmann destaca que desde aredemocratização até a atualidade, os governos sempre tiveram metas para a áreaeconômica, como metas de inflação e de superávit fiscal, mas metas para a áreasocial como um todo ainda não haviam sido estabelecidas. “Evidentementeque cada uma das áreas em separado tem as suas próprias metas, como metas devacinação ou de universalização da escola, mas não havia uma meta social quedesse conta de uma síntese do ponto de vista da ação governamental. Essa formade atuação da área social não permitiu, por exemplo, que nós tivéssemos umacoordenação na área social. Então, é uma inovação o estabelecimento de umalinha de pobreza e, ao mesmo tempo, o compromisso do governo de tirar aspessoas dessa condição de extremamente pobres”.
O pesquisador ressalta que o programa visa atingir um número considerável depessoas, praticamente um a cada dez brasileiros. “É o seguimento que dizrespeito ao núcleo duro da pobreza brasileira, de difícil acesso e que,portanto, exigirá uma maior capacidade de intervenção do governo. Nessesentido, é fundamental as ações estarem cada vez mais articuladas do ponto devista federal, estadual e municipal”, analisa. “O Brasil, quando eraa oitava economia mundial em 1980, já poderia ter superado a extrema pobreza.Não havia razão para que o Brasil tivesse extrema pobreza, a razão erapolítica. E hoje somos a sétima economia do mundo, não há razão para termosessa quantidade expressiva de pobres. Não é que não tenha alimentos, o problemaé político”.
Marcio Pochmann observa que a definiçãogovernamental de superar a condição de miserabilidade não quer dizer que o paíschegará a uma condição na qual não haverá mais miseráveis, mas significará umavanço muito significativo nesse sentido. “Certamente haverá miseráveispelas vulnerabilidades impostas por uma economia de mercado, mas do ponto devista estatístico isso será residual”, aposta. Para o pesquisador, paísesdesenvolvidos mostram que, do ponto de vista estatístico, inexistem miseráveis.”São condições de ordem econômica que permitiram, por intermédio dapolítica pública, praticamente a resolução da condição de miséria.Evidentemente que a pobreza existe, mas cada vez mais é uma pobrezarelativa”.
Pochmann acrescenta que o modelo de desenvolvimentodo Brasil é cada vez mais combinar o progresso econômico com avanço social.”Não há menção de superação do modo de produção capitalista, pelocontrário, é um aprofundamento do desenvolvimento capitalista, mas com travasde garantias de maior justiça na distribuição dos frutos do processoeconômico”.
Política de gotejamento
 
Para Virgínia Fontes, professora-pesquisadora daEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da UniversidadeFederal Fluminense, a propaganda do governo de que todos sairão ganhando com oBrasil sem Miséria, não é mentirosa, já que há um ganho, embora muito pequeno,para os setores pobres e ganhos maiores também para os setores ricos.”Isso está expresso como promessa e de fato aconteceu ao longo dos últimosoito anos, tanto na medida em que houve expansão do mercado interno, que é omais evidente e mais imediato, mas, sobretudo, no aprofundamento da dívidainterna”.
A professora ressalta que, mesmo diante de todas ascríticas, é preciso considerar que com o programa, há ganhos mínimos para aspessoas pobres no contexto de um país de extrema desigualdade como o Brasil.”Uma política de gotejamento como esta, que distribui gota de água pararegiões muito áridas socialmente, surte algum efeito, já que é melhor ter gotad’água do que não ter água nenhuma. Do ponto de vista da redução da misériaabsoluta ele atinge alguma coisa, mas não altera as condições da desigualdade eirá continuar sem alterar essas condições”. Para ela, essas mudançasmínimas não significam garantia de direitos. “É uma gota calibrada: nãotem processo de reajuste, não tem compromisso com produção qualificada detrabalho socializado, tem um compromisso estritamente mínimo, que é dar umarenda minimíssima para os setores de pior condição. É melhor isso do que nada,mas isso não é um direito. A construção de direitos está bloqueada pela ofertade programas”.
Com R$ 20 bilhões é possível acabar com a misériabrasileira?
 
Paralelamente às ações do Brasil sem miséria, ogoverno afirma que está montando também um completo mapa sobre a pobreza doBrasil. Pelos dados preliminares do ultimo censo demográfico do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2010, que embasaram a criaçãoda proposta, aproximadamente 46 % desses brasileiros extremamente pobres vivemna área rural. Além disso, 59% estão na região Nordeste e cerca de 70% dosextremamente pobres são pretos ou pardos. Os dados mostram ainda que 39,9% dapopulação indígena do Brasil é extremamente pobre. 
No lançamento do programa, foi anunciado que omontante de recursos empregados para as ações será em torno de R$ 20 bilhõesanuais. Entretanto, em 2010, os recursos gastos apenas para o pagamento doBolsa Família ficaram em torno de R$ 13 bilhões. Para Pochmann, diferentementede outras decisões governamentais, o recurso não é o determinante dessa opção.”No passado se estabelecia um programa e se dizia: ‘vai se gastar tanto’.Em determinado momento se dizia que os recursos não seriam suficientes: ‘bom, éesse recurso que temos e infelizmente não será possível atender ao compromissodaquele programa’. Então, o recurso é que determinava a capacidade deintervenção, sem recurso não tinha ação. Hoje, o que determina a capacidade deintervenção não é o recurso, embora, claro, sem o recurso não tenha ação. Mas odeterminante é o compromisso que o governo tomou. Ele diz que vai superar apobreza extrema; se não superar, é o item em que o governo fracassou. E, então,a oposição terá mais força em seu argumento”. 
A professora-pesquisadora da Escola Politécnica deSaúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ialê Falleiros tem uma opinião diferentesobre os recursos destinados ao programa. Para ela, o montante de recursosempregados não demonstra uma priorização dessas políticas sociais. “R$ 20bilhões, isoladamente, parece interessante, mas quando olhamos o que é oorçamento federal, vemos que um valor muito maior do que esse é destinado parapagar a dívida pública”, critica, mostrando uma reportagem do Pnud sobre oprograma cujo título é ‘Brasil sem miséria e lucro para empresários’. Oorçamento do governo federal previsto para 2011 e aprovado pelo Congresso nofinal de 2010 é de R$ 2,07 trilhões. Deste total, R$ 678,5 bilhões serãodestinados para o pagamento da dívida pública. “Então qual é o recado queesse programa quer passar do ponto de vista político, já que em termoseconômicos ele é uma falácia? É o mesmo recado que os organismos internacionaisvêm propondo em relação ao mundo: fazer parecer que tudo é uma coisa linda,porque todos estão engajados em colaboração, setores públicos e privados, todasas classes em sinergia em torno da proposta de colaboração para melhorar omundo”.
De acordo com a professora, há uma tentativa deafastamento das visões críticas que faz parecer, por exemplo, que ospesquisadores que questionam esse tipo de política estão contra melhorar a vidadas pessoas. “Não é possível ser contra beneficiar as pessoas que maisprecisam, mas ao mesmo tempo, se não tivermos esse olhar ampliado para ver alémdessa visão triunfalista do desenvolvimento, nós realmente não vamos enxergaressas nuances”.
Virgínia fontes lembra que no momento da posse dapresidente Dilma o valor mencionado para combater a extrema pobreza girava emtorno de R$ 40 bilhões, o dobro do que foi anunciado agora. “Isso indicaque deve ter tido muita queda de braço entre os setores que vão sercontemplados com recursos públicos. Porque a discussão era de eventualmentechegar a R$ 40 bilhões do programa de bolsas, no sentido de avançarsignificativamente para uma melhoria mínima das condições de vida depraticamente toda a população brasileira. De fato é uma melhoria mínima e épossível perceber isso pelo programa lançado agora”, afirma. Para aprofessora, o essencial da proposta é a manutenção do Bolsa Família, embora comuma abrangência maior, mas que não corresponde ao plano original do governo.
Remendo
Na avaliação de Virgínia, com esse programa, ogoverno federal busca atualizar na retórica a luta popular que, na prática, eletenta desmantelar. Segundo ela, o slogan principal do governo ‘País rico é paíssem miséria’, expressa uma contradição do modelo de produção. “Essa lutacontra a miséria tem um lado ligado à própria expansão do capitalinternacional, da atuação do banco mundial, de uma nova filantropização. Mastambém resulta de pressões e lutas de setores populares fortes. Só que, paranão ter miséria nesse modelo, é preciso ser cada vez mais rico, o que significaque atacar a miséria é garantir a produção crescente da concentração dariqueza”.
Destacando que o capitalismo é um modo de produçãoque gera crises permanentemente, ela situa o Brasil sem miséria. “Do pontode vista da lógica das crises do capitalismo, esse programa significa um granderemendo para tapar uma parte da tragédia social que foi sendo construída aolongo dos séculos XX e XXI, com a expropriação massiva da população e a formação,pela expansão do capital, de uma massa de mão de obra gigantesca, disponívelpara fazer qualquer negócio. Essa massa corria o risco de derrubar tudo, então,para não derrubar tudo e garantir que a concentração siga de maneira maistranquila, se faz uma política dessas. Não é uma política que reforce ascondições de auto-organização da população, mas sim da burguesia”, define.Entretanto, de acordo com a pesquisadora, existe a possibilidade de o programadesencadear também processos de contestação. “Imaginando que ele dêcompletamente certo, essa população, até porque consegue respirar, podereaprender a gritar e a gritar em novo tom”.
Reportagem de Raquel Júnia