Preconceito Linguístico: o nome da ministra e outras notas
Publicado em 16 Jun, 2011 às 16h53
Por Sírio Possenti
Sírio Possenti é linguista e professor da Unicamp |
Os pais eram fãs de Grace Kelly e queriam dar seu nome à filha. O tabelião achou que o nome (a pronúncia é, aproximadamente, greici) estava errado e grafou Gleisi. Em um caso (o final do nome), dobrou-se à pronúncia. No outro, decidiu corrigir.
O tabelião poderia cometer três erros de grafia, considerados diversos fenômenos. Poderia escolher diversas alternativas para a grafia do som “s“: c, s, ss ou sc (escolheu s). Poderia escrever o som final com e ou com i (escolheu i). E poderia grafar o segundo som da primeira sílaba com r (se soubesse que é um nome estrangeiro ou mesmo se considerasse palavras como “graça”), mas escolheu l, provavelmente porque o r lhe pareceu caipira ou popular ou “errado”, adjetivos aos quais muitos dão o mesmo sentido. Corrigindo a pronúncia, em certo sentido, se deu mal. Talvez achasse, hoje, que foi a invenção de um nome para a menina que lhe deu sorte. Vai ver ele acreditava em numerologia…
A variação (mudança) de l em r se chama rotacismo (continua sendo! não é dislexia!). Ocorre em contextos como flamengo / framengo (quando o l é a segunda consoante da sílaba) e algum / argum, quando o l está no final da sílaba. Nunca ocorre com l no começo da sílaba, qualquer que seja a origem social ou o grau de instrução do falante (lado é sempre lado, nunca rado).
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Analisar erros de grafia revela muitos traços da língua. Mattoso Câmara escreveu um texto sobre o tema já em 1957 (“Erros de escolares como sintoma de tendências linguísticas no português do Rio de Janeiro” – que vale para o Brasil)! Deveria ser leitura obrigatória! Talvez nos divertíssemos menos com “placas do meu Brasil”, ou, quem sabe, bem mais, porque saberíamos analisar os dados.
Menos
Uma das marcas do português popular é a forma menas (ver o dicionário Houaiss), que serve para ilustrar dois fatos: a) dialetos populares são tão regrados quanto qualquer outra “versão” da língua: menos sempre precede nomes femininos (menas maracutaia, menas comida; nunca *menas dinheiro, por exemplo); b) quando os cultos querem rir dos incultos, atribuem-lhe formas que eles mesmos engendram; uma é “a zelite” que, se fosse adequadamente transcrita, seria “as elite”; a outra eu só vi no Observatório da Imprensa, que tinha uma sessão chamada: Português de Menas. Faltou observação.
Preconceito?
Argumentos de autoridade quase nunca são bons. Mas, às vezes, vale recorrer a eles. Muita gente que não é do ramo acha que “preconceito linguístico” é invenção de lingüista talibã… Então, vejamos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no verbete “preconceito”:
p. lingüístico: LING qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos (ênfase minha, S. P.)
A abreviação LING quer dizer “Lingüística”. Esse Houaiss era um bobão, não era?
Normal
Leitores duvidaram que Caetano tenha dito “cantá ela”. Disse. E não vejo nenhum problema nisso. Sua fala mostra que ele é normal, mesmo de perto.
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