A destruição de um continente que clama por misericórdia, mas recebe indiferença
Por Gilson Caroni Filho
Todos sabem que o continente africano é o que paga o maior preço pela herança colonial e pela desorganização da produção agrícola provocada pelos complexos agroindustriais das potências europeias. De acordo com o Informe sobre Metas do Desenvolvimento do Milênio, publicado em 2010, ”entre os 36 países com índices de mortalidade infantil superiores a cem por cada cem mil habitantes, 34 estão na África Subsaariana.”
O legado deixado pelo colonialismo europeu foi extremamente pesado não apenas no que se refere à destruição da cultura tradicional e das reservas de fertilização do solo ou equilíbrio natural. Mas há histórias antigas que devem ser lembradas para que fiquem evidentes as múltiplas estratégias de dominação engendradas através da destruição ambiental.
Na África, elas se entrelaçaram à ausência de industrialização, crescimento demográfico acelerado e deterioração das relações de trocas externas, acompanhadas não raro de bloqueios e manobras desestabilizadoras. A combinação levou o continente ao limiar de uma catástrofe alimentar sem precedentes.
Os fatos que passamos a narrar mostram a centralidade da questão ecológica e, obviamente, sua radicalidade ética. Experiências inovadoras, alternativas aos sistemas produtivos implantados pelas potências européias e, posteriormente pelo imperialismo estadunidense, devem ser implementadas. Mas se não há outro método senão o do erro e do acerto, a experiência acumulada já nos permite evitar a devastação provocada por crimes ” acidentais”. Relembrar é fundamental para a ação política.
No final do século 19 a África já tinha sido duramente atingida por séculos de tráfico de escravos e exploração de seus recursos naturais, notadamente os minerais. Mesmo assim, ainda existiam no continente sociedades prósperas e vigorosas, econômica e culturalmente.
Uma única e aparentemente irrelevante intervenção européia mudou esse quadro de forma abrupta, devastadora e irreversível.
Em meados da década de 1880 uma força expedicionária italiana fez uma de suas periódicas incursões no nordeste da África. Sua permanência foi curta, mas teve conseqüências catastróficas. Os italianos trouxeram consigo cabeças de gado para sua alimentação; e essas cabeças de gado por sua vez trouxeram e legaram à África a Rinderpest, ou peste do gado.
A Rinderpest é uma moléstia infecciosa de ruminantes, altamente contagiosa e virulenta, causada por um vírus, Tortor bovis.
O vírus tem um período de incubação curto, de três a cinco dias. Os primeiros sintomas da doença são lassitude e inapetência, acompanhadas de febre de mais de 40 graus. Seguem-se supurações oculares, nasais e bucais, diarréia, perda de massa corporal, desidratação e desinteria, e finalmente sobreveem, após não mais de duas semanas, prostração, coma e morte.
Originária das estepes da Ásia, a Rinderpest chegou à Europa no rastro das invasões de povos como os mongóis. Após vários surtos epidêmicos, a doença se tornou endêmica em algumas regiões da Europa; e, como freqüentemente acontece com endemias, ocorreu um processo de seleção natural pelo qual os indivíduos naturalmente resistentes sobreviviam e se reproduziam, e seus descendentes, ou parte deles, possuíam imunidade parcial ou tolerância. Eram infectados, mas não desenvolviam a doença, tornando-se assim portadores e transmissores assintomáticos.
Mas até então a Rinderpest era totalmente inexistente na África sub-saariana, possivelmente porque os camelos, os únicos animais a cruzar o deserto, não eram suscetíveis à moléstia. E portanto nenhuma espécie nativa era dotada de qualquer defesa imunológica contra a doença.
Sem a barreira protetora do deserto, a Rinderpest se disseminou de forma avassaladora, primeiro pelo chamado Chifre da África e rapidamente por todo o continente. Em 1887 a “peste do gado” surgiu na Eritréia, local da invasão italiana, e em menos de um ano havia se espalhado por toda a Etiópia. Dali seguiu dois caminhos. Para o oeste, através do Sudão e do Chade, e em cinco anos chegou ao Atlântico. Para o sul, através do Quênia e de Tanganica, e dali penetrando no centro do continente.
Antes do final do século19 a epidemia tinha chegado à África do Sul, apesar das tentativas pelas autoridades das então ainda incipientes colônias inglesas ali já estabelecidas de impedir sua passagem erguendo uma barreira sanitária ao longo de 1.500 quilômetros, e havia dizimado quase todo o gado da região. E destruído, por onde passou, as sociedades nativas.
A doença não afeta seres humanos, mas aquelas sociedades tiveram suas bases destroçadas. Os pastores e criadores perderam seus rebanhos. Os agricultores ficaram privados dos animais de tração para seus arados e para as rodas de água que serviam para irrigar seus campos. E os caçadores viram desaparecer suas presas, pois a Rinderpest ataca
indiscriminadamente espécies domésticas e selvagens.
O morticínio é até hoje incalculável. Pela fome, e pelas epidemias oportunistas que se instalaram aproveitando o quadro de subnutrição generalizada. E também pelo impacto psicológico. Tribos como os Masai, celebrados como prósperos criadores de gado e bravos guerreiros, viram toda sua estrutura social desabar da noite para o dia e
se reduziram a pedintes, implorando por comida às caravanas que cruzavam seu território. Os Fulani, outra tribo antes rica e poderosa, perderam todo seu gado e, incapazes de aceitar o flagelo que os havia acometido, se auto-destruíram quase que à extinção matando suas próprias famílias e se suicidando em massa.
Para as potências coloniais européias a Rinderpest foi uma benção. Ao avançarem maciçamente sobre a África no final do século 19 e no começo do século 20 encontraram uma população empobrecida e assolada por doenças, drasticamente reduzida, em alguns casos a menos de 10% do que tinha sido uma ou duas décadas atrás, e incapaz de oferecer qualquer resistência significativa aos invasores. Poucas, se alguma, conquistas coloniais terão sido tão fáceis quanto a da África pós-Rinderpest.
Mas a peste do gado teve outra consequência: mudou a própria ecologia do continente. Até então, as grandes manadas que ocupavam as campinas africanas limitavam o crescimento da vegetação, tanto pelo pasto quanto por sua presença física. Com o desaparecimento dessas manadas, as planícies foram tomadas pelas gramíneas, que cresciam sem qualquer fator limitador, e a vegetação arbórea e arbustífera se espalhou por vastas áreas de florestas e cerrados.
Esse ambiente se mostrou propício à proliferação da mosca tsé-tsé, um grupo de insetos hematófagos do gênero Glossina que infesta tanto animais como seres humanos, e é o transmissor do parasita causador da trepanossomose conhecida como “doença do sono” (outra espécie de trepanossoma é causador da Doença de Chagas). A doença é caracterizada por febre e inflamação das glândulas linfáticas, seguidas, quando ocorre o comprometimento da medula espinhal e do cérebro, por profunda letargia (daí seu nome) e, numa alta proporção de casos, de morte.
De início a Rinderpest também afetou a mosca tsé-tsé negativamente, ao dizimar seus hospedeiros animais, domésticos e selvagens, e humanos. Mas a vegetação exuberante que passou a dominar as campinas forneceu o terreno ideal para que as moscas adultas depositassem suas larvas e assim procriassem em grande número, o que permitiu à tsé-tsé sobreviver.
Quando a epidemia de Rinderpest cedeu, por falta de vítimas, as populações de animais selvagens, por não dependerem de humanos para sua subsistência, se recuperaram muito mais rápida e intensamente do que as de amimais domésticos e de humanos. E a mosca tsé-tsé pôde se espalhar pelos novos hospedeiros, livre de qualquer controle. Por sua vez, a
infestação pela tsé-tsé e a doença de que é portadora impediram que os humanos e seu gado voltassem a ocupar as planícies como áreas de pasto.
Nessas condições, a tsé-tsé passou a dominar o novo ambiente, incluindo o leste da África onde era inexistente, e regiões do sul do continente em que havia praticamente desaparecido.
A combinação de mudança ambiental e a devastação colonial fizeram com que as sociedades já arrasadas pela peste do gado nunca pudessem se recuperar. Além disso, muitos dos conflitos tribais que hoje ocorrem são fruto não de rivalidades milenares, mas sim de disputas resultantes da Rinderpest, quer por comida no auge da epidemia quer pelas escassas áreas de pastoreio existentes no ambiente por ela criado, e agravadas pelas tensões geradas pelas fronteiras arbitrariamente riscadas no mapa pelas potências coloniais.
Ironicamente, outra iniciativa européia, esta bem intencionada, serviu para preservar as condições econômicas adversas. Os colonizadores supuseram, erroneamente, que o ambiente com o qual se depararam – vastas áreas de planícies cobertas por grama alta e ocupadas por animais selvagens, de cerrados e de florestas, todas infestadas pela mosca tsé-tsé e sem a presença do homem e de animais domésticos – era a “África primitiva”; e quando mais tarde surgiram os primeiros movimentos “conservacionistas” (alguns eivados de uma boa dose de hipocrisia) que
levaram à criação dos parques nacionais e das reservas animais foi esse ambiente supostamente “primitivo” que se estabeleceu como modelo para a preservação, não raro com o beneplácito e a colaboração dos governos locais, desesperadamente necessitados das receitas em moeda forte provenientes do “turismo ecológico”. Com isso, as áreas de “preservação” foram para sempre vedadas a qualquer atividade econômica, desprezando o fato de que, antes da Rinderpest, homem, gado e fauna selvagem dividiam equilibradamente o território, e de que esse equilíbrio era dinâmico, com ciclos de predominância dos diversos tipos de vegetação e formas de ocupação.
Isto criou ainda uma nova figura antes inexistente: o “poacher”, ou caçador clandestino, tanto para obter alimento quanto para se apoderar, quase sempre para serem contrabandeados para países ricos, de despojos valiosos como chifres de rinoceronte ou patas de macacos. O “poacher” tornou-se, ao lado do ditador caricato, o grande vilão da África pós-colonial, a ser bravamente combatido pelo destemido “defensor da natureza”, sejam naturalistas (muitos deles de fato idealistas e dedicados) sejam heróis de ficção – infalivelmente caucasianos. As “vozes d’África”, como sempre, não se fazem ouvir.
A África que nos é mostrada hoje, nos documentários sobre a “África selvagem” e nos noticiários sobre as “guerras tribais”, na ficção popular e nas biografias romanceadas “baseadas em fatos reais” é, portanto, em mais de um sentido, uma artificialidade criada pela intervenção européia, direta e indireta, na ecologia do continente, incluída sua ecologia social. Um embuste reeditado pelos Nat Geos que se multiplicam nas telas.