Patrícia estava jurada de morte, mas curiosamente o Poder Judiciário não lhe ofereceu nenhuma proteção. O brutal assassinato da juíza Patrícia Acioli, com vinte e um tiros disparados numa emboscada, ainda vai nos assombrar por muito tempo.
A polícia carioca diz não descartar nenhuma linha de investigação. Descarta apenas o auxílio da Polícia Federal, justamente a menos envolvida com a atividade da vítima, que condenou inúmeros policiais e ex-policiais militares.
Enquanto aguardamos que se descubram executores e mandantes desse crime bárbaro, algumas verdades se põem em destaque com a tragédia. Embora tivesse sido incluída em uma lista de “marcados para morrer”, ela não era destinatária de qualquer tipo de proteção do Poder Judiciário.
A presidência do TJ do Rio de Janeiro se apressou em dizer que a própria juíza havia descartado a segurança ou que nem a havia pedido. Admitiu, todavia, que há quatro anos, o Tribunal decidiu por conta própria reduzir a proteção dela.
Na última entrevista concedida pela juíza ao Jornal “O São Gonçalo”, dias antes do homicídio, jornalistas lhe indagavam justamente sobre as conhecidas ameaças de morte e a constante resistência que ela sofria por parte de policiais militares descontentes.
Aparentemente, só a cúpula da justiça carioca não se deu conta de que o perigo prosseguia.
Nesta segunda-feira, cumpriu-se ordem de prisão assinada por Patrícia horas antes de ser assassinada. Versava justamente sobre a forma simulada de execução policial, os famigerados “autos de resistência”, comuns na PM, pelos quais, em resumo, a vítima acaba sendo responsabilizada pela própria morte.
Não é muito diferente, aliás, do que vem acontecendo com a juíza, com as menções recorrentes de suas ligações pessoais com agentes da segurança ou insinuações sobre desentendimentos amorosos – como se uma coisa ou outra pudessem justificar a barbaridade a que foi submetida.
O assassinato descortina situações que até então não eram de conhecimento público.
A estrutura oligárquica dos Tribunais de Justiça, por exemplo, que ainda são composto por castas.
A direção é dos desembargadores mais antigos, que estão no topo da pirâmide. Na base, os juízes, a expressiva maioria que não têm voto nas eleições, não têm participação nas escolhas das políticas e pouco são ouvidos em suas próprias carências.
Neste ambiente que ainda não conhece a democracia, não estranha que os juízes tenham tanta dificuldade em sensibilizar o poder, inclusive no que respeita à segurança.
Mas o crime ainda pode nos mostrar mais.
Muito do crescimento do estado paralelo nas polícias tem a ver com o excesso de punição e não propriamente com a impunidade. Supostamente para debelar altos índices de criminalidade, o sistema penal tem se acostumado a fechar os olhos para desvios e exageros da repressão.
Quantos processos por tortura foram julgados nesses quase quinze anos de existência da lei? Raríssimas acusações foram formuladas pelo Ministério Público e ninguém supõe que a violência esteja minguando.
Os fins justificam os meios, dizem alguns; a luta contra a criminalidade exige sacrifícios, afirmam outros, pretextos vazios para justificar a conivência com desmandos.
Enganos que já devíamos ter apreendido com a história – esquadrões da morte nasceram ao redor das polícias e se hoje resistem como grupos organizados de extermínio, bem armados e atuantes, é sinal de que delas jamais se dissociaram por inteiro.
Como bem sintetizou o juiz carioca João Batista Damasceno no dia seguinte ao assassinato: O perigo de se criar cachorros bravos e deixá-los soltos para atacar os indesejáveis aos seus donos é que depois não mais distinguem a quem estão autorizados a morder.
Patrícia Acioli não merece nossa lembrança e nossa homenagem porque “combatia os crimes”, mas sim porque os julgava.
Combater o crime é atividade e dever da polícia. Ao juiz cabe julgar, sem hesitação, mas de forma isenta e imparcial, dentro de um processo com todas as garantias.
Honrar a magistrada não é fazer mais do que isso com o fato que a vitimou: nos limites da lei, investigar, acusar e julgar.
Que a sociedade não se iluda com falsas promessas, soluções miraculosas ou qualquer outra forma de paranoia e mistificação.
O país não precisa de leis de exceção, recrudescimento das polícias ou supressão de garantias.
Não é isso que manterá acesa a memória de quem deu a vida para fazer valer o direito.
Justiça se faz com juízes independentes, que sejam respeitados, ouvidos, e que tenham a capacidade de resistir tanto a pressões quanto a ameaças.
Terra Magazine
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