Revolta em Londres: conheça as 'bestas selvagens' britânicas
enterrar a primeira caracterização simplista que tinham – negros,
pobres e excluídos.
uma lista mínima de demandas como ocorreu com as manifestações dos
estudantes ingleses contra a triplicação do valor das matrículas
universitárias no ano passado. Os distúrbios em Londres e outras
cidades inglesas se parecem mais com os de Paris em 2005, ou os de Los
Angeles em 1992. O primeiro ministro David Cameron e a poderosa
imprensa conservadora não querem entrar em complexas reflexões
sociológicas. “O que ocorreu é extremamente simples. Trata-se de pura
delinquência”, disse Cameron no debate parlamentar convocado em caráter
de emergência. O autor de vários livros de história militar, entre
eles “A batalha das Malvinas”, Max Hastings, foi mais longe: “São bestas selvagens.
Comportam-se como tais. Não têm a disciplina que se necessita para ter
um emprego, nem a consciência moral para distinguir entre o bem e o
mal”, escreveu no Daily Mail.
Com mais 2.300 prisões e mais de 1.200 processados por roubo ou
violência, o desfile pelas cortes não permitiu ver nenhuma “besta
selvagem”. Ao invés disso, o perfil dos acusados surpreendeu os
britânicos que tiveram que enterrar a primeira caracterização simplista
– negros, afrocaribenhos, pobres e excluídos – para começar a entender
um fenômeno complexo. Designers gráficos, estudantes universitários,
professores, adolescentes, púberes, desempregados, marginais, um
aspirante a entrar no exército, uma modelo: a variedade era de um
tamanho suficiente para desafiar qualquer estereótipo. Cerca de 80% dos
que desfilaram pelos tribunais têm menos de 25 anos. A metade dos
processados são menores de 18: muito poucos superam os 30 anos.
O apelido de “besta selvagem” tem uma arrogância de classe que não
deveria ocultar seu principal objetivo: despojar os distúrbios de
qualquer significado. A milhões de anos luz desta perspectiva, Martins
Luther King dizia que “os distúrbios são a linguagem dos que não têm
voz”. Na Inglaterra, o problema é que esta linguagem foi, em vários
momentos, um balbucio ininteligível.
Macbeth na encruzilhada
O conflito começou com os protestos pela morte de Mark Duggan, no
bairro de Tottenham, baleado pela polícia que, aparentemente, foi
rápida demais no gatilho. Em um primeiro momento era um protesto
político local marcado pela tensão étnica em um bairro pobre: o
primeiro objeto de ataque foram dois carros de patrulha da polícia
queimados pelos manifestantes. Este pontapé inicial converteu-se
rapidamente em quatro noites de saques de grandes lojas, roubo
indiscriminado de comércios de bairro e indivíduos e enfrentamentos com
a polícia em bairros pobres de Londres e da maioria das grandes
cidades da Inglaterra.
Mas além de expressar uma exuberância dionisíaca, destrutiva e raivosa,
que sentido pode ter o incêndio de uma pequena loja familiar de móveis
no sul de Londres que havia sobrevivido a duas guerras mundiais? Como
explicar que dois tipos com aspecto de hooligans simularam ajudar um
jovem ferido para roubar-lhe o que ainda não tinham lhe roubado, como
ocorreu com o estudante malaio Ashrag Haziq? Os distúrbios foram então
“um relato contato por um idiota cheio de som e fúria que não significa
nada”, como na famosa definição que Shakespeare faz da vida em
Macbeth?
Nos distúrbios houve de tudo. A presença de bandos de jovens e o roubo
meramente oportunista estiveram tão na ordem do dia como o uso de
torpedos via celular para coordenar os ataques em lojas e bairros. Em
uma sociedade onde o dinheiro se converteu em valor absoluto, a
identidade parece definir-se, para muita gente, pela posse de tênis de
marca ou do modelo de celular mais recente, ao qual essas pessoas não
tem acesso porque vivem mergulhados na pobreza. Se a oportunidade
aparece, por que não? Isso é o que fazem os banqueiros, os políticos, as
grandes fortunas.
O atual ministro da Educação, Michael Gove, disparou indignado contra
“uma cultura da cobiça, da gratificação instantânea, do hedonismo e da
violência amoral”. O mesmo Gove gastou em 2006, 10 mil dólares para sua
casa e passou a conta para a Câmara dos Comuns como parte de sua
“dieta” parlamentar. Entre os objetos adquiridos, havia uma mesa que
custou mais de 1.000 dólares, um móvel Manchu por 700 dólares e um
abajur de 250 dólares.
Pobreza e gangues
Um dos casos que contribuíram para romper o estereótipo foi o de Alexis
Bailey, um professor de escola primária de 31 anos, muito respeitado
em seu trabalho, preso em uma loja da Hi-fi em Croydon, sul de Londres.
Bailey ganha 1.000 libras em mês (cerca de 1.600 dólares) e paga de
aluguel mais da metade disso: 550 libras (uns 900 dólares). No caso de
Bailey, como no de Trisha, graduada em Psicologia Infantil que acaba de
perder seu trabalho, percebe-se o núcleo de uma narrativa distinta da
“mera delinquência” de “bestas selvagens”. “Ainda estou pagando o
empréstimo que recebi para estudar. Cameron não faz nada. Não tem ideia
do que é ser jovem. Dizem que nos aproveitamos dos benefícios. Mas
queremos trabalho”, disse Trisha ao The Guardian.
Estes germens de discurso apareceram várias vezes. Na voz de uma mãe em
um supermercado (“não tem nada, o que vão fazer?”), na de um jovem
desempregado (“é preciso se rebelar”). As gangues juvenis são a
expressão final e niilista deste fenômeno de não pertencimento social e
de falta de perspectiva de vida. “As gangues oferecem uma relação de
pertencimento a uma estrutura, uma disciplina, um respeito que os jovens
não encontram em nenhum outro lado”, escreve Ann Sieghart no The Independent.
Esta semana, em um primeiro distanciamento de sua própria
caracterização dos distúrbios, David Cameron lançou uma revisão de toda
a política governamental para “recompor uma sociedade exausta”, evitar
uma “lenta desintegração moral” e “solucionar problemas sociais que
cresceram durante muito tempo”. É um começo. O que está claro é que as
prisões, que em sua maioria já estão superpovoadas, não resolvem o
problema de fundo: em alguns meses os mesmos jovens sairão para as
ruas. A grande questão é se uma coalizão como a conservadora-liberal
democrata, que fez do ajuste fiscal uma religião, pode levar adiante
uma política mínima que comece a lidar com um fenômeno que tem
complexas raízes econômicas sociais e culturais.