Racismo não

Urariano Mota comenta pérola global: Negro caolho vira loiro de olho azul

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por Urariano Mota*

No último quatro de setembro, em pleno Domingão do Faustão, o ator Rodrigo Lombardi expôs esta maravilha, para elogiar uma dupla de dançarinos:

 “Tem um cara que eu acho sou muito fã desde que sou criancinha, acho que foi ele que me fez ser artista, juntamente com o meu pai. Era um cara que na sua época era assim negro, caolho, um metro e cinquenta, chamado Sammy Davis Júnior, que quando entrava no palco saía com dois metros de altura, louro, de olho azul” (risos na plateia).

O vídeo dessa verdadeira pérola brasileira está aqui

De imediato, caiu na web com uma série de comentários, desde os que chamavam de racista o ator aos que o defendiam, deitando panos mornos.

Olha, tenho muita pena das pessoas que encararem isso como preconceito… São pessoas que estão querem se vitimar!!! Ele deixou bem claro na referencia dele que Sammy Davis Junior se transformava em outra pessoa no palco, alguém totalmente diferente do que  ele era… Se ele fosse branco, alto, loiro, de olho verde se transformaria em negro, baixo, de olhos negros… por favor, parem de achar chifre em cabeça de cavalo e prestem atenção? no contexto…

Nossa,  estava dando uma lida nisso tudo e é impossível não escrever algo. Racismo seria falar que ‘caolho é feio’ ‘negro é horrível’ ‘e um metro e cinquenta é ridículo’. Em nenhum momento? foi dito isto pelo ator. Geennnnteeee!!!! qual o problema em admitir que algumas pessoas são mais bonitas que outras exteriormente, vamos ser hipócritas então???? Algumas pessoas estão ficando cheias de dedos quando o assunto é racismo…

A discussão levantada não é pela citação da palavra `negro`,e sim, que o ator falou que Sammy se tornava branco quando dançava, ou seja, `apesar dele ser um preto (credo), ele dançava como branco`. “É racismo!!! As escolas não ensinam as pessoas? a compreenderem falas, textos, nada? Não, não ensinam”.

É claro que o comentário do patinho feio, Samy Davis Jr.,  que virou cisne branco, louro e de olho azul por força do talento, é claro que isso  não significa que o ator da Globo seja racista. Que horror, isso não. Ele apenas deu corda à veia poética, que não tem outra. Rodrigo Lombardi lembrou um artista negro até na melhor das boas intenções. De um modo muito elogioso, para os louros, of course. Ele quis dizer que os nascidos com o acidente da pele branca já entram no mundo com o mesmo valor dos negros talentosos. Pois o sol nasceu para todos, para brancos e queimadinhos de sol. Mas é inegável que o comentário de Lombardi foi claro, alto de dois metros como a formação cultural do Brasil.

Desde os bancos escolares todos aprendemos um Brasil ideal para as sinhazinhas prendadas. Lá na sala de aula, em todos os trezes de maio, nos virávamos para os negros, para os de pele mais escura que a nossa. Os meus colegas, os meus amigos, incapazes de uma resposta plena da rebeldia dos quilombos, baixavam os olhos. Os meus irmãos de pele e coração às vezes sorriam, sorriam com o seu riso mais branco que os detergentes da televisão, sorriam só com os dentes brancos, quando ouviam, “hoje é teu dia, negão”.

Mas não só. Aos males da escola todos recebemos a formação nas ruas, no trabalho, no cinema, na televisão,  de um país envergonhado de sua mestiçagem, dos seus negros. É como se vivêssemos numa Europa do Norte com algumas manchas de território.  É uma coisa tão visceral, que mesmo o grande Joaquim Nabuco chegou a escrever revoltado, do exterior, porque os jornais haviam lembrado, na morte do amigo Machado de Assis, que o nosso maior gênio era mulato. Palavras de Nabuco: “para mim, ele sempre foi um grego”.

Lembro que em 1977, quando um senhor de cabelos grisalhos entrou sozinho no Teatro do Parque, no Recife, todos pensaram que o homem era um operário.  Parecia um operário, porque era negro. Camisa dupla face. Ele iria, deveria ir cuidar de algum fio solto, ou rever a iluminação do teatro, pensaram todos. Então os que esperavam na fila, notaram os seus grandes óculos escuros, o seu nariz, o seu rosto oval, de um Modigliani na África. Então perceberam que o eletricista era o operário de almas Angenor de Oliveira, o compositor amigo de Noel Rosa, o homem a quem Nelson Sargento não ousava pedir parceria, por vergonha, diante do “compositor finíssimo“. Cartola!

Depois do show, ninguém pensou que aquele negro saíra do palco na pele de um branco, louro, de olhos azuis. Saiu como Cartola, “apenas”.

*Urariano Mota é jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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