A incomensurável responsabilidade do PT na CPI das Privatizações Tucanas
A CPI que está sendo proposta não deve ser encarada como uma oportunidade de revanche contra personalidades arestosas da vida política nacional
O desabalado processo de privatizações vivido pelo Brasil nos anos 90 ressentiu-se, entre outros requisitos, da necessária transparência de um debate sereno e abrangente.
No atropelo que marcou uma agenda impulsionada por coalizão de interesses econômicos e ideológicos, então no auge do seu poder, a mídia conservadora cumpriu a função de silenciar as vozes e forças discordantes, asfixiando-as com o método conhecido da desqualificação.
O aparelho de Estado resultante de quase duas décadas de ditadura militar necessitava sem dúvida ser passado a limpo pela democracia, tendo sido desvirtuado como instrumento da sociedade e do desenvolvimento.
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Ademais de sua blindagem repressiva, é indiscutível que muitas das empresas enredadas na engrenagem estatal nesse período serviam apenas de fachada para o assalto ao erário público, desservindo a população e desguarnecendo o país em áreas essenciais.
Não foi esse, porém, o critério da bocarra voraz que escolheu o quê e como seriam privatizadas, extintas ou fortalecidas as empresas formadoras do patrimônio público brasileiro.
O livro-dossiê do jornalista Amaury Jr., ‘A Privataria Tucana’, desvela um pedaço do apetite rapinoso que orientou boa parte do processo e dele se aproveitou. Antes e com rigor reconhecido até pelos seus críticos,o jornalista Aloysio Biondi já havia vasculhado outras dimensões e casos correlatos.
A nova relação de forças existente no país permite que a discussão esmagada nos anos 90 – e ainda vetada pela mídia conservadora, que silencia diante do livro citado – seja reaberta agora. Ao protocolar um pedido de CPI sobre o assunto, na última quarta-feira, dia 21, o deputado Protogenes Queiroz, destravou o ferrolho da porta do silêncio. É importante utilizá-la para arejar o tema com o ar fresco da seriedade que o passado negou.
A CPI que está sendo proposta não deve ser encarada como uma oportunidade de revanche contra personalidades arestosas da vida política nacional. O envolvimento de José Serra e o enriquecimento de seus familiares no intercurso com o afanoso processo é um ângulo. Ilustrativo, merecedor de esclarecimentos amplos,mas talvez não o mais importante. A reabertura da discussão hoje tem o mérito, entre outras coisas, de adicionar elementos à retificação da macroeconomia legitimada no processo de privatizações, e cujos efeitos deletérios ainda são determinantes na condução da agenda brasileira de desenvolvimento.
À rapinagem do patrimônio público sucedeu-se, simultaneamente nos anos 90, a expropriação da soberania democrática na formulação das políticas públicas brasileiras. A agenda do Estado mínimo que embalava o rufar dos negócios ‘no limite da irresponsabilidade’, transferia ao mesmo tempo o comando regulador da economia à autossuficiência dos livres mercados, descredenciando a política, as urnas e a mobilização social como protagonistas supremos do desenvolvimento. Quando tomou posse em 2003, não por acaso, em meio ao dilúvio de interditos e restrições, o Presidente Lula desabafou: ‘Terceirizaram o Estado brasileiro’.
Não são questões de natureza teórica. A dominância financeira subjacente a esse rolo compressor explica hoje porque o Estado brasileiro destina ao SUS, por exemplo,com as consequências sabidas, o equivalente a 1/3 da fatia do PIB que o Estado francês reserva à saúde pública. Em contrapartida, graças a juros de calibre inédito em economias relevantes, o Brasil oferece 5,5% do PIB aos rentistas da dívida pública que não para decrescer. O desequilíbrio cambial decorrente da política monetária ensandecida faz do Brasil atualmente um paraíso dos capitais especulativos, com a contrapartida de importações maciças que aniquilam elos das cadeias produtivas, corroendo a indústria,o emprego e o saldo comercial.
Embora agônica no plano mundial por conta da crise capitalista que engendrou, a hegemonia das finanças desreguladas continua a dar as cartas aqui e alhures. Entre outros motivos, porque as forças de esquerda, de um modo geral, renderam-se elas também ao receituário ortodoxo do mito dos mercados autossuficientes.
O PT traz no seu DNA sindical, enriquecido por correntes de esquerda e de extração religiosa progressista, um antagonismo de berço com essa agenda. Mas acomoda em seu interior também o germe da rendição socialdemocrata que hoje pavimenta o avanço desconcertante da extrema-direita na Europa, em meio ao desmantelo de direitos duramente fincados como estacas demarcatórias da fronteira entre a civilização e a barbárie da lógica redutora do capital.
A CPI da privatização abre um espaço de discussão política e de investigação de responsabilidades num momento crucial da maior crise vivida pelo capitalismo nos últimos 80 anos. Pode ser uma trincheira importante para evitar que o colapso em curso seja ‘resolvido’ dobrando-se a aposta nos métodos e agendas que provocaram a a vossoroca da esfera pública, a captura dos recursos nacionais e o engessamento financeiro e ideológico do Estado brasileiro a partir dos anos 90.
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É incompreensível assim que deputados do PT tenham omitido a sua assinatura no requerimento de CPI protocolado no dia 21. Não se trata de renegá-los, mas de sensibilizá-los para o debate relevante e inadiável que essa CPI propicia, num quadro de gravidade histórica inquietante.
Por Saul Leblon, Carta Maior