Moradores de rua são queimados vivos por grupo de jovens e gritam por sobrevivência
Um dos moradores morreu e outro está internado em estado grave. O delegado de plantão, Bruno Ehndo, contou que a única testemunha do crime disse em depoimento ter condições de identificar dois dos sete criminosos que participaram da ação
Um ato de barbárie praticado com frieza acabou em tragédia na noite do último sábado, em Santa Maria. Dois moradores de rua tiveram os corpos incendiados por um grupo de jovens às 23h30, momento em que as vítimas dormiam no gramado da QR 118. Um dos homens atingidos, José Edson Nicolas de Freitas, 26 anos, não resistiu às queimaduras de segundo e terceiro graus — que atingiram 63% do corpo (membros superiores e inferiores, tronco, cabeça e genitálias) — e morreu por volta das 14h de ontem, no Hospital Regional da Asa Norte (Hran).
Também para o Hran foi levado Paulo César Maia, 43 anos. Ele continuava internado na unidade de queimados até a noite deste domingo, com ferimentos de segundo e terceiro graus espalhados em 22% do corpo. O fogo atingiu a face, o abdome e membros superiores do homem. Segundo informações da assessoria de comunicação do hospital, o estado de saúde da vítima é bastante delicado. Não há previsão de alta.
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O caso é investigado pela delegacia de Santa Maria. Os policiais da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria) preferiram não dar detalhes sobre o rumo das investigações. Na tarde de ontem, duas pessoas suspeitas foram ouvidas, mas logo liberadas por falta de provas que as comprometessem. O delegado de plantão, Bruno Ehndo, contou que a única testemunha do crime disse em depoimento ter condições de identificar dois dos sete criminosos que participaram da ação. “É possível que façamos o retrato falado deles“, adiantou o plantonista.
Em depoimento, a testemunha relatou que, por volta das 22h, pelo menos sete pessoas chegaram ao local guiando bicicletas. No gramado, que fica próximo a um estacionamento da quadra, estavam acomodados vários moradores de rua. Na primeira vez que estiveram no local, os jovens atearam fogo apenas em um sofá velho e saíram às pressas. A atitude fez com que a maioria dos mendigos deixasse o espaço, possivelmente com medo de mais retaliação. Apenas dois continuaram lá após a ação dos jovens. “Cerca de uma hora e meia depois, três pessoas do grupo voltaram ao local e encontraram as vítimas dormindo. Acreditamos que os incendiários espalharam alguma substância inflamável nos dois, colocaram fogo neles e fugiram”, detalhou Ehndo. Os agentes ainda tentam levantar o motivo que levou os rapazes a praticar a violência.
Gritos
O desempregado Jefferson Meneses da Costa, 26 anos, lanchava em casa quando ouviu gritos vindos da rua momentos depois de José Edson e Paulo César serem atingidos pelo fogo. O morador voltou a sua casa, pegou uma toalha seca e saiu correndo para ajudar as vítimas. Segundo ele, José Edson corria desenfreadamente e gritava tentando conter as labaredas, que se alastravam rapidamente pelo corpo. “A cabeça dele e os órgãos genitais estavam em chamas. Peguei a toalha e comecei a tentar abafar o fogo. Ele estava sem roupa. A pele do homem era negra, mas ficou branca porque ele já não tinha mais couro. O outro estava com os braços e as costas queimados, mas já tinha conseguido apagar o fogo”, relatou.
Jefferson afirmou que foi ele quem acionou o Corpo de Bombeiros. “Em pouco tempo, eles chegaram.” O morador da quadra e a família costumavamoferecer comida para o grupo de mendigos. “Eles nunca mexeram com ninguém. Foi uma covardia tamanha o que fizeram com eles”, disse Jefferson. Além dele, outras pessoas tentaram salvar a vida das vítimas.
Na manhã de hoje, os resquícios da tragédia ainda podiam ser vistos. O sofá velho não existia mais e parte da bermuda usada por uma das vítimas estava no chão, consumida pelo fogo. Estarrecidos com a violência, alguns moradores ainda tentavam encontrar a razão de tanta frieza. “Eles estão aqui há mais ou menos um ano. Até bebem, mas não mexem com ninguém. Nunca tinha visto nada parecido com isso. Foi muita maldade“, disse uma mulher, que preferiu não se identificar. Um outro morador acredita que a motivação do crime possa estar ligada ao tráfico de drogas da região. “Já até esperava que isso acontecesse, porque eles consomem entorpecentes. Para mim, isso tem a ver com rixa em razão de drogas. Mas, de qualquer forma, eu fico com dó deles.”
Há 30 anos tratando vítimas de queimaduras, Maria Thereza Piccolo, diretora do Instituto Nelson Piccolo — hospital especializado em atendimento a queimados — explica que o percentual do corpo atingido não determina, necessariamente, a gravidade do estado do paciente. “Uma queimadura de 70% do corpo gera disfunções e comprometimento em vários sistemas, mas não determina o óbito. Já tivemos caso de recuperação com pessoas que tiveram 94% do corpo queimado. O mais importante é que as vítimas procurem um médico imediatamente. Para aliviar a dor de uma queimadura, a única ação recomendada é colocar o local sob água corrente de torneira.”
Agências & Correio Braziliense