Raízes do mensalão: nem 1998, 2004 ou 2005; conheça o pontapé inicial
A origem do mensalão não vem de 2004, com a Globo, nem em 2005, com a Folha. E os que imaginam que o início surgiu em 1998, com a reeleição de FHC, também estão enganados
Muita gente pensa que a história do mensalão começou em 14 de maio de 2004, quando a TV Globo mostrou uma reportagem com um diretor da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos (ECT), Maurício Marinho, recebendo propina de uma pessoa apresentada como um empresário.
Outros pensam que foi quando o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) deu a bombástica e fantasiosa entrevista à Folha de S. Paulo, em 6 de junho de 2005, que logo repercutiu pela imprensa, tornando-se capa nos maiores jornais do país. Foi nela que o então deputado criou o neologismo “mensalão”.
Entretanto, estes acontecimentos expõem apenas a superfície da luta política que há por trás do chamado “mensalão”. Sua história mais profunda só pode ser entendida no quadro mais largo da luta política no Brasil. Ela começou muito antes, mesmo deixando de lado considerações sobre o ”mensalão tucano”, que irrigou a campanha eleitoral de 1998, beneficiando o candidato do PSDB em Minas Gerais Eduardo Azeredo e, também, a candidatura de Fernando Henrique Cardoso à reeleição para a presidência da República (“O valerioduto abasteceu Gilmar”. Carta Capital, nº 708, 27 de julho de 2012).
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Um dos marcos dessa história foi a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando a coalizão tucano-pefelista imaginou iniciar um projeto de poder que, como acreditava o mentor de FHC, o ex-ministro das Comunicações Sérgio Mota, deveria durar 30 anos!
De “principe dos sociólogos” a “monarca dos políticos”
Não durou tanto. A eleição de Fernando Henrique Cardoso e seu vice do PFL (atual DEM) Marco Maciel foi impulsionada pelo lançamento do Plano Real que, em 2 de julho de 1994, introduziu o real como padrão monetário.
A promessa de fim da inflação e de uma moeda forte (de “primeiro mundo”) sensibilizou o eleitorado e transformou o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, no ansiado (pela classe dominante) anti-Lula: o candidato com apelo popular suficientemente forte para derrotar o líder operário que, em 1989, quase chegou à presidência e deixou a classe dominante em pânico.
Fernando Henrique Cardoso era, aliás, um anti-Lula conveniente para a classe dominante. Ancorado em seu passado de oposicionista à ditadura militar, sua candidatura navegou no clamor pela ética na política que os brasileiros passaram a ver como uma verdadeira bandeira programática depois do impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992, acusado justamente de corrupção.
Coube ao governo tucano implantar o programa de Collor: o programa de privatizações, reformas neoliberais, desregulamentação das relações trabalhistas, redução dos direitos sociais e submissão às imposições do imperialismo, que Collor iniciou sem poder levar até o final.
Mas a ilusão popular com Fernando Henrique Cardoso durou pouco e diminuiu drasticamente durante seu primeiro mandato. Para assegurar a aplicação daquele programa antinacional e antipopular, o então presidente usou de todos os meios, sob uma chuva de acusações de ter comprado votos de parlamentares para mudar a Constituição e permitir, para si próprio, a reeleição para mais um mandato como presidente da República. O cientista político Bolivar Lamounier comentou com ironia, na semana daquela votação, que Fernando Henrique Cardoso – antes considerado o “príncipe dos sociólogos” brasileiros – com a reeleição podia se tornar “o monarca dos políticos” (Veja, 5 de fevereiro de 1997).
Ele tinha razão: a soberba fez o presidente governar de forma imperial, de olhos fechados para o povo e para as ruas, e de joelhos perante a classe dominante, o capital financeiro e o imperialismo, principalmente dos EUA.
Veja: “A euforia inicial pode azedar”
Estava pavimentado o caminho para o desastre. Fernando Henrique Cardoso esperou a campanha eleitoral passar e o evento de sua própria posse, em janeiro de 1999, para revelar a gravidade da crise econômica na qual sua política econômica encalacrou o país.
As medidas por ele anunciadas agravaram a crise, dificultando a vida das empresas e dos trabalhadores, com o aumento do desemprego, que já era alto.
Seu governo mudou o câmbio, desatrelando o real do dólar, desmanchando assim a chamada “âncora cambial”. Em consequência, a cotação da moeda norte-americana disparou de R$ 1,20 em novembro de 1998 para R$ 2,07 no final de janeiro de 1999, representando um golpe rude e inesperado nas finanças das empresas que, estimuladas pelo própio governo, haviam contraído empréstimos externos: em poucas semanas elas viram o valor em reais de suas dívidas quase dobrar. As matérias da revista Veja refletiram a gravidade da crise e o sentimento de traição de grande parte dos empresários. Uma delas tinha um título significativo: “A âncora virou anzol”; outra dizia: “A euforia inicial pode azedar” (Veja, 20 de janeiro de 1999). Contra a crise, o governo pensou na receita conservadora de sempre e, num artigo elogioso sobre o ministro da Fazenda Pedro Malan, a revista assegurou que o governo estudava a venda imediata da Petrobras (Veja, 3 de fevereiro de 1999).
A popularidade do presidente foi ladeira abaixo. Em dezembro de 1998 ele ainda ostentava 58% de aprovação nas pesquisas de opinião; em março de 1999, caiu para 35% e em julho ainda mais: 26%. A desaprovação crescia no mesmo sentido, passando de 37% em dezembro de 1998 para 56% em março de 1999 e para 66% em julho.
Se a queda do prestígio de Fernando Henrique Cardoso era nítida, crescia a percepção de que a eleição de 2002 para sua sucessão seria vencida pelo temido Luís Inácio Lula da Silva.
Um mandato é suficiente para Lula
Os setores conservadores da política e da mídia, articulados na coalizão PSDB-PFL, alimentaram o sonho de que bastaria um mandato para Lula como presidente. E que logo o controle do Palácio do Planalto voltaria às mesmas forças políticas que sempre estiveram à frente dele: os derrotados de 2002. Apostaram que o novo governo se esboroaria em um imaginado desastre político- administrativo, que o prestígio popular do líder operário logo se diluiria, e que isso favoreceria o retorno do projeto neoliberal e seus paladinos ao governo.
Mas a realidade não saiu como seus planos e, ante a realidade adversa, tentaram construir este cenário apelando para a velha e esfarrapada banderia da corrução, já aplicada contra Getúlio Vargas (1954, levando ao suicídio do presidente), Juscelino Kubtischek (1955 a 1961) e João Goulart (1961 a 1964, resultando na deposição do presidente).
As acusações contra Lula se multiplicaram desde 2004 quando os sonhos de esboroamento do governo se desfizeram, principalmente depois do bom desempenho de candidatos apoiados por Lula na eleição municipal daquele ano.
Ao contrário das esperanças conservadoras, a popularidade do governo Lula não cedia. Se o grau de aprovação do governo caiu, em 2004, chegando a 29% (fruto dos problemas que o governo enfrentava devido à “herança maldita” de FHC e também das acusações feitas através da mídia conservadora), o grau de confiança popular no presidente permanecia: 54% (Jornal do Brasil, 29 de junho de 2004).
Os brasileiros começavam a notar a diferença entre a nova era que se iniciava sob Lula e o período de retrocesso e empobrecimento vivido sob Fernando Henrique Cardoso. De um lado, essa diferença se manifestava na retomada da economia e do emprego. Em 2004, informa o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e do Emprego) foram criados 1,8 milhão de empregos formais, muito acima do milhão de novos empregos do último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Outro sinal importante de mudança – e inquietante para os conservadores e neoliberais – foi o anúncio feito pelo governo, em março de 2005, de que não renovaria o acordo com o Fundo Monetário Inrternacional (FMI) assinado por Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que reforçou a submissão do Brasil às autoridades financeiras daquele organismo e do imperialismo. Aquele anúncio apontava para o fortalecimento da soberania nacional e para a recuperação da autonomia do país em matéria de política econômica, o que é inaceitável para a direita neoliberal.
Fernando Henrique Cardoso defende a “ruptura institucional”
Neste quadro, a tática que sobrava para a direita e para os conservadores era investir numa cruzada moralista para abalar o governo do presidente Lula. Paralelamente ao espetáculo midiático protagonizado por Roberto Jefferson e personagens de seu quilate, Fernando Henrique Cardoso repercutia em artigos e discursos aquelas acusações usando-as como base para orientar seus prosélitos do campo conservador e direitista.
No auge daquela campanha midiática, o ex-presidente tucano repetiu em sua coluna nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo afirmações de que “o partido do presidente e seu governo estão envoltos num tsunami de suspeitas de corrupção” (publicada em 8 de agosto de 2005). Mas fazia uma ressalva dizendo-se cheio “de cuidados para não atribuir ao presidente culpas específicas em função de suas responsabilidades gerais”, embora afirmasse que o presidente não assumia essas responsabilidades deixando de fazer “o que o País espera: governar”. Mas pedia pressa: “Nesse processo, entretanto, ruma-se contra o tempo. O país perderá se deixarmos passar a hora”, insinuando (claramente) a tomada de medidas contra o presidente – o impeachment.
Em artigo publicado em abril de 2005, naquela coluna, Fernando Henrique Cardoso teve a desfaçatez de propor que, ante as acusações contra o governo, a oposição (isto é, o conluio direitista e conservador) devia estar preparada para tudo, inclusive para uma ruptura institucional! Isto é, para o golpe. Esta ambição recuou logo para o objetivo de impor ao presidente Lula o compromisso de não se candidatar à reeleição em 2006.
Em 5 de julho de 2005 Fernando Henrique Cardoso voltou à carga apelidando as acusações como “inéditas em nossa história”, mantendo a ressalva de que “até agora nada indica que o presidente Lula tenha diretamente algo a ver com tudo isso”.
Mas insistia na tese de que “Lula deveria anunciar que não é mais candidato à reeleição” (entrevista à revista Exame,1º de setembro de 2005). E tentava explicar a chantagem: isso “poderia aliviar a crise e permitir que [Lula] volte a ser candidato se as coisas andarem bem”.
Deixava claro o objetivo político da cruzada moralizante da mídia conservadora e da oposição neoliberal e de direita: abrir caminho para sua volta à presidência da República com o afastamento de Lula e da esquerda da disputa eleitoral de 2006.
Lula rejeitou prontamente a chantagem. Como mostraram os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa (“Como Lula deu a volta por cima”, Valor Econômico, 21 de maio de 2010), sua reação foi forte e embutia uma ameaça da qual a direita e os conservadores fugiam como o diabo da cruz: “Se eles estão pensando que vão me tirar daqui no tapetão, nem pensar! Vou pra rua”, disse ele numa reunião.
Impeachment
Se o presidente não aceitava as pressões para desistir da disputa, era preciso tirá-lo – esta foi a tese que começou a crescer no campo da oposição conservadora e de direita. Fernando Henrique Cardoso, o principal dirigente da oposição conservadora e neoliberal, defendeu a tese em seu costumeiro estilo sinuoso e aparentemente indireto. Em julho de 2005, numa coluna em O Estado de S. Paulo, referiu-se ao impeachment de Collor num claro paralelo à crise criada em torno do presidente Lula. “Os fatos foram mais fortes do que tudo e nos curvamos a eles e à necessidade da depuração”, escreveu, concluindo com uma espécie de “garantia” ao dizer que “a democracia resistiu galhardamente” (O Estado de S. Paulo, 5 de julho de 2005).
O subtexto era claro: em sua opinião o afastamento de Lula poderia não significar riscos à democracia na forma como um conservador como Fernando Henrique Cardoso a compreende.
Em agosto ele voltou à carga. Insistindo na acusação de que nunca teria ocorrido, “na História do Brasil, uma sequência de desvios de conduta tão deprimente como a que foi montada no País sob os auspícios de um partido, o PT” (ele deixava de considerar, é óbvio, a pilhagem do patrimônio público ocorrida em seu governo, entre 1995 e 2002), e pedia que as responsabilidades recaíssem “sobre cada indivíduo na proporção dos erros cometidos. Seja qual for o resultado das investigações, o importante é que, em seguida, haja as punições de acordo com as leis”. Sem reservas: “se crime de responsabilidade houver ou quebra de decoro parlamentar, sigam-se as regras estabelecidas na Constituição com todas as consequências”. O alvo da expressão “crime de responsabilidade “não podia ser outro senão o presidente Lula, não deixando dúvida de que a pena constitucional defendida naquele texto só podia ser seu impeachment (O Estado de S. Paulo, 8 de agosto de 2005).
O auge da crise ocorreu na ocasião do depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios, em 11 de agosto de 2005. Orientado pelo senador Antônio Carlos Magalhães, um dos principais líderes da direita brasileira desde a década de 1950, seu depoimento associou a campanha presidencial de 2002 a irregularidades eleitorais referentes ao financiamento da campanha; elas dariam o pretexto para o pedido de anulação judicial da vitória de Lula em 2002 – podendo passar a presidência da República ao segundo colocado, José Serra!
Lula: “esses caras não conhecem minha ligação com o povo”
“O governo Lula balançou” naquele dia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa e, no dia seguinte, a cúpula do Palácio do Planalto fez um exame detalhado da situação, encarando “o impeachment como uma ameaça concreta”, afirmam aqueles repórteres. Lula revelou que um auxiliar havia proposto, dias antes, que renunciasse à reeleição em 2006, aceitando os acenos de trégua feitos por Fernando Henrique Cardoso. “Esses caras são gozados”, respondeu Lula, reafirmando a disposição de continuar no páreo. “Eles não conhecem a minha ligação com o povo. Isso não vai acontecer! Vou ganhar a eleição desses filhos da mãe!”. Desenhava-se, cada vez com mais força, a reação que faria os conservadores e a direita recuar: o apelo à rua (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
Mas foi exatamente o temor dessa ligação do presidente com o povo que intimidou a direita e os conservadores. A pretensão de levar o presidente ao impeachment começou a perder força quando os dirigentes da oposição avaliaram, numa reunião realizadas na segunda feira seguinte ao depoimento de Duda Mendonça, não terem votos no Congresso Nacional nem apoio popular para tirar o presidente. “Não há clima político para o impedimento e o pedido, se houver, tem de vir da sociedade”, disse o senador tucano Arthur Virgílio, depois da reunião (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
À sua maneira, o então senador tucano Arthur Virgílio manifestou os temores da direita e dos conservadores: o medo da reação popular. Isto é, da “rua”.
No passado, a “rua” já se manifestara contra a mesma linha política representada pela coalizão tucano-pefelista: em 1954 quando, após o suicídio de Getúlio Vargas, a população apedrejou instalações de empresas norte-americanas e redações de jornais que participaram da campanha contra o presidente em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. A manifestação teve força suficiente para barrar o golpe em andamento, que ficou “adiado” por uma década. Em 1964, a direita conquistou a “rua”, mas sem mobilizar os trabalhadores a seu favor: as passeatas contra Goulart foram frequentadas pela classe média carola e anticomunista que deu um ar de apoio popular ao golpe de Estado.
A direita perdeu a “rua”
As mais recentes manifestações da “rua” não foram exatamente a favor do programa da direita e dos conservadores. Em 1984, multidões exigiram as Diretas Já, apressando o fim da ditadura militar. Em 1992, ergueram-se novamente contra o programa neoliberal de privatizações e cortes de direitos sociais do presidente Fernando Collor de Mello.
Em 2005 havia, de fato, um risco para a direita e seus dirigentes estiveram à beira do pânico quando, em julho, estudantes que participavam do 49º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Goiânia, juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) colocaram 20 mil pessoas nas ruas da capital goiana contra o golpe em andamento, em apoio ao presidente Lula e à ordem constitucional e em defesa das reivindicações contidas na Carta ao Povo Brasileiro, que fora entregue ao presidente em junho, assinada por 42 entidades do movimento social. Ela convocava manifestações populares contra a campanha da direita e por mudanças no rumo do governo.
Lula reconheceu o significado daquela iniciativa ao receber a Carta dizendo: “essa é a diferença dos amigos e dos companheiros como vocês em relação aos que apareceram no meu caminho nos últimos anos. É bom contar com vocês nessa hora” (Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2005).
A direita perdera a “rua” e se consolava com um discurso conveniente, para eles, de que o povo teria sido “comprado” pelos programas sociais (como o Bolsa Família) e pelas melhorias econômicas trazidas pelo governo Lula.
Ilusões desfeitas no moinho da política
Na entrevista para a revista Exame (1º de julho de 2005) Fernando Henrique Cardoso ainda mantinha a ilusão de obter apoio popular para a campanha que liderava contra o presidente Lula. Fora assim no passado – em 1954 ou 1964, por exemplo; porque seria diferente agora? Para explicar a popularidade de Lula, apesar dos ataques que sofria, ele usou um sofisma. “A opinião pública reage lentamente”, disse, acrescentando um preconceito elitista, de classe, ao argumento: “A opinião mais esclarecida já perdeu a confiança, o povo não. É um movimento que aos poucos vai se espalhando”. “Opinião mais esclarecida”, aqui, é uma expressão que se refere aos setores conservadores que aderiram à campanha anti-Lula; ele esperava que estes setores, tradicionalmente formadores de opinião, repercutissem as teses da campanha conservadora, obtendo a adesão dos trabalhadores e do povo. Mas o país já tinha mudado, e muito – e o que se viu, nos meses seguintes, foi a falência destes formadores de opinião, que perderam cada vez mais a capacidade de influir sobre as decisões dos demais. Basta lembrar o fracasso do pífio Cansei! que a direita tentou convocar em 2007, e que deu em nada.
Sem perceber, ou admitir, que a questão não é de moralidade ou ética, esta ilusão conservadora se juntava a outras desfeitas no moinho da política e da luta de classes.
O velho e persistente conflito entre desenvolvimentistas e neoliberais – que, desde os primórdios da República, manifestou-se no confronto entre industrialistas e os dogmáticos da “vocação agrícola” do Brasil – foi reposto com força no final da ditadura de 1964. Os interesses do capital financeiro e do imperialismo confluíram no programa neoliberal imposto pelo Consenso de Washington reforçando a posição subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Num país como o Brasil, onde a divisão de classes atingiu alto grau de complexidade, a luta de classes em torno do projeto neoliberal envolveu inclusive setores das classes dominantes que discordavam de alguns aspectos parciais, como destacou o professor Décio Saes num artigo publicado na revista Princípios, em 1996.
Embora praticamente toda a classe dominante fosse favorável à desregulação das relações de trabalho e ao programa de privatizações, cada uma de suas facções tinha lá seu próprio neoliberalismo. Os grandes bancos brasileiros, por exemplo, não queriam a abertura do sistema financeiro aos estrangeiros. A grande burguesia industrial, representada pela Fiesp e pela CNI, queria a liquidação dos direitos sociais e trabalhistas, mas resistia à abertura do mercado ao capital estrangeiro e, sobretudo, à enxurrada de importações representada pela abertura econômica que ameaçava, inclusive, o “desaparecimento do empresariado industrial e a conversão dos antigos industriais em importadores de similares estrangeiros” (Décio Saes, “O governo de FHC e o campo político conservador”. Princípios Nº 40, fevereiro/março/abril de 1996).
Aldo Rebelo: “A rua não tem regimento interno”
Lula manifestou uma notável percepção deste dissenso. Se há uma contradição de classe mais geral, que opõe o proletariado à burguesia, ou os trabalhadores às classes dominantes, os conflitos dentro da própria classe dominante têm também uma expressão política que se manifesta na oposição entre programas para o país – e o neoliberalismo de Collor e Fernando Henrique Cardoso atendia sobretudo aos interesses da oligarquia financeira aliada do imperialismo.
Naquela conjuntura, cresceram os acenos do presidente em direção aos sindicalistas, trabalhadores e ao movimento social. Em 12 de julho de 2005 – em plena crise – ele colocou no Ministério do Trabalho e do Emprego o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ex-presidente da CUT, Luiz Marinho. Era uma sinalização importante, reforçada pela aceleração do processo de recuperação do valor do salário mínimo.
A disposição de “ir pra rua” acompanhava estas mudanças. Na reunião ocorrida no Palácio do Planalto no dia seguinte ao depoimento de Duda Mendonça, Lula reafirmou esta disposição: “Nós vamos pra rua defender o mandato que o povo nos deu”, disse Lula (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
A “rua” – este era o fantasma dos pesadelos conservadores e da direita. Temor ressaltado pelo deputado comunista Aldo Rebelo ao final de uma reunião com Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, que teve a participação dos então ministros Márcio Thomaz Bastos e Antônio Palocci. O tema da conversa, ocorrida depois do depoimento de Duda Mendonça, foi a questão do impeachment, e os ministros manifestavam preocupação com a agressividade da oposição.
A oposição temia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa (Valor Econômico, 21 de maio de 2010), que a reação de Lula a um processo de impeachment pudesse ser um apelo ao instinto de classe dos trabalhadores: “o primeiro trabalhador a chegar à Presidência da República ia ser degolado pela elite”, seguido de um inevitável aprofundamento das contradições políticas no país. Temor acentuado quando Aldo Rebelo advertiu o ex-presidente: “Rua não tem regimento interno”. Isto é, seu desenvolvimento pode ser imprevisível, ao contrário dos embates no âmbito do parlamento, onde existe um regimento interno que estabelece as regras para o confronto.
Tudo indica que a frase de Aldo Rebelo repercutiu no ânimo da liderança tucana. “O problema é o seguinte: temos força?” [para o impeachment], perguntou o ex-presidente aos senadores tucanos Arthur Virgílio e Tasso Jereissati, que era presidente do PSDB. Virgílio já havia concluído, antes, que não tinham. E o próprio Fernando Henrique chegou a essa conclusão na conversa finalizada com a advertência de Aldo Rebelo. “O impeachment é um ato político, o jurídico é outra coisa. Você vai para o tribunal. O ato político você tem que ter força para ganhar, não é ter a razão”, disse aos ministros e ao deputado que foram conversar com ele. E a oposição de direita e conservadora reconhecia não ter força para ganhar.
A “tática do jagunço”: sangrar o adversário até que morra
A consequência foi uma mudança na tática da oposição. Se Lula não aceitou desistir da reeleição, se o impeachment era inviável pela falta de força da direita, o caminho escolhido por ela e pelos conservadores foi aquilo que pode se chamar de “tática do jagunço”: sangrar o adversário até a morte. Investir contra ele, de todas as formas imagináveis, com o objetivo de desmoralizá-lo e erodir a alta aprovação popular, levando-o à derrota na eleição de 2006.
Isto intensificou a campanha moralista da oposição, que passava a apostar no desdobramento das CPIs e em sua repercussão na imprensa conservadora. A “tática do jagunço” mobilizou os cardeais tucanos e pefelistas, de Tasso Jereissati a Jorge Bornhausen, José Serra e Aécio Neves (Valor Econômico, 21 de maio de 2010). Os meses seguintes e a campanha eleitoral de 2006 foram marcados por ela e pelas acusações mais inverossímeis, caluniosas e irresponsáveis que o país assistiu até a véspera da eleição de 2006. Foi, contudo, um vale-tudo inútil cujo resultado é conhecido: a direita e os conservadores perderam.
Os propagandistas do chamado “mensalão” alardeiam tratar-se do “maior escândalo de corrupção da história da República”. Esquecem do mar de lama constituído pela privataria tucana e pela entrega de patrimônio público a empresas privadas (muitas delas multinacionais), a preços aviltados. Esquecem do esquema de financiamento das campanhas de 1998, envolvendo o candidato tucano em Minas Gerais (Eduardo Azeredo) e também Fernando Henrique Cardoso. Ele e a cúpula de seu governo não esqueceram, e uma das últimas medidas do então presidente da República foi aprovar uma lei, no final de seu governo (em 24 de dezembro de 2002) garantindo foro privilegiado a ex-presidentes, ex-ministros, ex-governadores, ex-secretários de Estado e ex-prefeitos e por aí vai, subtraindo o julgamento de suas ações à justiça comum. Medida que indica o temor de precisar comparecer perante os tribunais para responder por aquilo que fez na presidência da República.
Ganhar no tapetão
O processo continuou na justiça. Com base nas apurações feitas pelas CPIs em agosto de 2007 o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia apresentada em abril de 2006 pelo Procurador Geral da República, iniciando o processo contra os acusados pelo chamado “mensalão”. É o processo cujo julgamento entrou em sua fase final no dia 2 de agosto.
As alegações deste processo, baseadas em argumentação frágil, reiteram o caráter político de seu desdobramento e acentuam o objetivo de condenar o governo de Luís Inácio Lula da Silva e a esquerda em geral, acusados de imersos no apelidado “maior escândalo de corrupção” da República.
Mas não há provas e este é o problema para a oposição. Inexistência de provas reforçada inclusive pelas alegações do autor da farsa do “mensalão” – Roberto Jefferson – ao STF, em setembro de 2011, como revelou a colunista Hildegard Angel (Portal R7, 15 de setembro de 2011). Em sua defesa, o denunciante afirma que o “Mensalão nunca existiu. Não foi fato. Foi retórica”.
O caráter político do julgamento do chamado “mensalão” revela-se nessa fragilidade. A mídia conservadora e a direita neoliberal condenaram antecipadamente aqueles a quem acusaram pelo crime do “mensalão”. E agora colocam uma faca no pescoço do STF, exigindo que ratifique esta condenação “extrajudicial”. Este é o grande problema da direita e dos conservadores. Que mesmo assim não deixam de usar aquelas acusações e o julgamento como ferramenta política contra o ex-presidente Lula e a esquerda (“Com a faca no pescoço. Ou sem a faca?”. Retrato do Brasil, edição nº 55, fevereiro de 2012).
Uso, agora, defensivo: em meio às graves dificuldades eleitorais que vai ceifando, eleição a eleição, os quadros mais notáveis do conluio tucano-pefelista, esperam agitar as sessões do STF no mesmo espírito da “tática do jagunço”: sangrar o adversário para pelo menos reduzir sua força na eleição deste ano e criar algumas dificuldades para a disputa de 2014.
Por José Carlos Ruy, Vermelho