“Adelaide” é uma representação contemporânea da desumanização negra que, no limite, assegura o privilégio da brancura, este artefato onipresente e multifacetado de poder
Marcio André dos Santos, em seu blog
O personagem de “Adelaide” não é uma novidade na dramaturgia brasileira. A construção de um personagem negro, do sexo feminino e que tem como pretensão fazer as pessoas rirem sem parar data de pelo menos 40 anos. O livro que inspirou o documentário A Negação do Brasil de Joel Zito narra e analisa a presença dos negros na televisão brasileira. Presença marcada pela subalternidade e preconceito racial.
Para quem nunca viu este personagem do programa Zorra Total da TV Globo, “Adelaide” é uma mulher negra, idosa e que entra no metrô pedindo esmolas e, consequentemente “importunando as pessoas”. Além do reforço racista e sexista que o programa faz em torno das mulheres negras e de todos os negros por extensão, em alguns episódios “Adelaide” exala um cheiro ruim, ou pelo menos é isso que as cenas querem nos comunicar.
Imagine você na sala de estar, com sua família, crianças e de repente aparece uma mulher negra, mal vestida e fedendo. Além do fedor, ela não tem os dentes da frente e parece absolutamente ridícula… Todos riem às alturas. É essa a intenção. O riso, magicamente, nos tira por uns instantes a capacidade de perceber o horror por trás de tais cenas.
Eu poderia gastar muitas linhas aqui descrevendo as dezenas de cenas pejorativas dessa personagem, mas quero me concentrar em outro ponto: qual a ideia básica que fundamenta esse personagem? O que lhe dá sentido? Qual a intenção de um núcleo de profissionais de mídia e comunicação ao construir, detalhe por detalhe, uma caricatura totalmente negativa de uma mulher negra, idosa e pobre?
Dizer que é o racismo talvez não seja suficiente. Sim, é racismo. Entretanto, é um tipo de racismo singularmente brasileiro especificamente produzido pelas mídias televisivas. Os especialistas que criaram tal personagem – as elites editoriais, como diria Muniz Sodré – reeditam um imaginário surgido a pelo menos duzentos anos atrás por literatos, jornalistas e políticos brancos e ancoram nas plásticas vias do humor o pior do sentimento antinegro.
Existem muitas formas de definir e abordar o racismo. Pode ser visto como um instrumento de manutenção de privilégios econômicos; pode ser visto como sentimento de superioridade ou então como mecanismo de preservação de lugares simbólicos, culturais e psicológicos de um grupo em relação a outro. Pode também ser a mistura de tudo isso e até mesmo um tipo antigo de desumanização. Por exemplo, o tráfico transatlântico de escravos tinha como pressuposto a transformação de negros em coisas, objetos, seres sem alma e transcendência. Bichos, em suma. Opera-se assim um processo completo de animalização que justica toda e qualquer atrocidade.
“Adelaide” é uma representação contemporânea da desumanização negra que, no limite, assegura o privilégio da brancura, este artefato onipresente e multifacetado de poder. Privilégio que se manifesta imagética e ideologicamente e forja a realidade tal como querem que a vejamos: ora manifestando-se sutil aos nossos olhos, ora completamente brutal.
“Adelaide” é prova concreta de que o “mito da democracia racial” continua operando (secretamente?) no cerne dos aparelhos produtores de imagens e imaginário social. Faz-nos rir dos crimes mais chocantes de nossa história, em feixes coloridos de um sábado a noite.
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