Além de ser uma resposta ao horror, a canção "Strange Fruit" poderia se transformar também numa espécie de acalanto
Se a arte não tem o poder de mudar o mundo, o que dizer de uma canção soturna e melancólica cuja letra – irônica até a raiz dos cabelos e sustentada por uma poesia cruel – fala de linchamento? “Strange Fruit”, a canção confundida com sua principal intérprete, Billie Holiday (1915-1959), construiu uma estranha reputação ao longo do tempo, desde que foi gravada pela cantora em 1939. Foi admirada e odiada na mesma proporção, em virtude dos efeitos devastadores que provocava pela voz de Billie.
Cantora excepcional, cheia de alma e experiência de vida, Billie não compôs a música, mas a incorporou de tal forma que ela ficou sendo sua. Assim, ela a utilizava nos shows em momentos de grande dramaticidade – para centrar as atenções de uma plateia distraída ou para calar a boca de alguém racista ou bêbado mais abusado. “Strange Fruit” acompanhou a carreira dela até o fim, e sempre foi cantada como uma espécie de resumo biográfico da vida miserável que Billie conheceu antes, durante e depois da fama.
O escritor americano David Margolick examinou a música com profundidade no livro “Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção” (Tradução: José Rubens Siqueira, ed. Cosac Naify, 144 págs., R$ 39,90), lançado originalmente em 2000 nos EUA. É uma obra pequena e densa. Ao contar a história de “Strange Fruit”, Margolick fala por tabela de pessoas e eventos extraordinários, ligados a uma época marcada pela chaga do preconceito racial elevado à potência máxima, sintetizada pelos inúmeros, comuns e levianos linchamentos de negros que ocorriam principalmente, mas não só, no sul dos EUA.
Margolick mostra como “Strange Fruit” tocava nessa ferida. “Muitas canções são pura distração ou entretenimento”, diz o autor ao Valor. “Elas levam nossa cabeça para longe dos problemas. ‘Strange Fruit’ foi e é única porque na verdade dirige nossa atenção para um dos problemas fundamentais da civilização: a intolerância.”
No ano em que foi lançada, o preconceito racial ainda era um tabu. Ninguém falava, quanto mais cantava a respeito. “Billie cantou esse tema de forma acessível e poderosa”, diz Margolick.
“Strange Fruit” é o tipo de música que faz estragos logo na primeira audição. Os depoimentos que Margolick colheu demonstram tanto o poder de encantamento quanto a repulsa que ela pode provocar. Mas ela não teria um efeito tão espetacular caso não saísse da garganta de Billie: todos os que tentaram depois dela tiveram que encarar a sombra da principal intérprete.
As histórias paralelas ajudam a fazer do conjunto a maravilha que ele é. De um lado, há o lugar em que Billie cantou a música pela primeira vez, o Café Society, estranha casa noturna de Manhattan que abrigava debaixo do mesmo teto, sem regalias e distinções, playboys, artistas de cinema, músicos, socialites e outros habitués de cores diversas. Os garçons se vestiam como maltrapilhos, e os racistas eram retirados do local sem o menor constrangimento. Nesse ninho de arte e tensa tolerância, Billie cantou “Strange Fruit” pela primeira vez. E o que aconteceu se repetiria em muitas outras ocasiões: depois de um silêncio sufocante, os aplausos exasperados. Nascia uma revolução de bolso, condenada às dimensões de um palco apertado, em que um jato de luz incidia diretamente sobre a cabeça da intérprete. E depois dela, o abismo, porque Billie deixava o tablado e não cantava mais nada.
E embora a canção pertencesse à intérprete por direito, quem a compôs de verdade tem uma história tão fascinante quanto o lugar em que ela foi cantada por Billie. O autor oficial é Lewis Allan (1903-1986), escritor judeu progressista que simplesmente se impressionou com a imagem de dois cadáveres negros pendurados numa árvore, assistidos por uma multidão de rostos brancos obtusos. Dessa foto nasceu a canção, irônica em todas as linhas (“Árvores do sul dão uma fruta estranha”, diz o primeiro verso).
Strange Fruit, interpretada por Billie Holiday
O nome verdadeiro de Lewis era Abel Meeropol, o homem que adotaria os filhos de Ethel e Julis Rosenberg, executados por espionagem em 1953. Um dos momentos mais bonitos do livro é a descrição das visitas de um dos filhos adotivos ao hospital em que Meeropol se encontrava, sofrendo do mal de Alzheimer. O filho cantava “Strange Fruit” para ele, substituindo o disco que, de tanto tocar, já estava riscado. Além de ser uma resposta ao horror, “Strange Fruit” poderia se transformar também numa espécie de acalanto.
Cadão Volpato, Valor
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