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Nós estamos bem em Gaza. E você, como está?

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Naquilo que parece uma constante repetição do passado, não é fácil descrever a sádica política israelense na Palestina

Por ocasião da celebração do 85º aniversário do Partido Comunista da Síria e Líbano, o cantor e escritor palestino Jaled El-Hibr cantou estas palavras:

Nós estamos bem em Gaza
E você, como está?
Estamos bem, sob ataque
E você, como está?
Nossos mártires jazem sob os escombros
Nossas crianças vivem agora em barracas de acampamentos
E perguntam por você.
Nós estamos bem em Gaza
E você, como está?

O mar está atrás de nós
Mas lutamos
O inimigo está à nossa frente
Mas continuamos lutando
Temos tudo de que precisamos:
Alimento e armas
Promessas de paz
Agradecemos tanto por seu apoio!
Nós estamos bem em Gaza
E você, como está?

Nossas almas
Nossas feridas
Nossos lares
Nossos céus
Nossos rostos
Nosso sangue
Nossos olhos
Nossos caixões
Proteja-nos de suas armas,
De suas promessas,
De suas palavras,
De suas espadas

Nós estamos bem em Gaza
E você, como está?

Bola de fogo emerge de prédio após ataque militar aéreo de Israel na Faixa de Gaza. Mais de 90 já foram mortos. (divulgação)

Naquilo que parece uma constante repetição do passado, não é fácil para as palavras descreverem a sádica política israelense (com o apoio do Ocidente) dedicada sempre à caça de palestinos, a perseguir e angustiar continuamente os nativos, a utilizá-los como laboratório do armamento, como laboratório dos jogos eleitorais de Israel: quanto mais palestinos você matar, mais votos israelenses vai conseguir nas próximas eleições.

Depois de uma revolta em grande escala na Jordânia, que ocorreu horas antes da atual invasão israelense – na qual, pela primeira vez, os jordanianos exigiram uma mudança no regime político, e não apenas reformas cosméticas nos governos –, as pessoas se perguntam por que Israel não deveria se preocupar com seu leal vizinho: o rei da Jordânia. Ou seria também parte do plano israelense nesta invasão o de atrair a atenção pública sobre a Palestina e permitir que o brutal regime jordaniano reprima a revolta?

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O falecido Fayez Sayegh, em seu livro publicado em 1965 Colonização da Palestina, analisava a natureza violenta do Estado colonial israelense, insuflado de ideologia sionista, com um projeto para eliminar, com todos os meios possíveis, a população nativa por meio do deslocamento, da segregação e das guerras constantes contra tal população e aqueles que a rodeiam. Originou-se pela conquista e, mediante a força e a guerra, deve continuar – eis aí o perigo que este Estado militarizado representa para os nativos palestinos e para os árabes que vivem em seu entorno.

Sayegh prossegue: é um Estado percebido como a frente do Ocidente contra o Oriente; por essa razão, obteve então o apoio ocidental e continua obtendo-o agora. Tanto a União Europeia como os Estados Unidos declararam seu apoio à atual invasão israelense afirmando que Israel tem direito de se proteger. De quê? De um povo que é um laboratório das políticas racistas israelenses e um laboratório do armamento israelense financiado pelos Estados Unidos e pela União Europeia? De um povo cujo principal objetivo é viver com dignidade, mover-se com liberdade e seguir adiante com uma vida normal trabalhando, criando, recriando e sonhando?

Na análise de Sayegh, Israel não apenas é a frente do Ocidente contra o Oriente, mas também um punhal no território que une África e Ásia, e assim continua sendo até este mesmo dia como o poder hegemônico em ambos os continentes. Suas mãos chegam até Sudão, Etiópia e outros lugares com a venda de armas para a África para apoiar qualquer regime que possa contribuir para a hegemonia israelense, e o mesmo é feito na Ásia. As armas são o principal produto do comércio israelense, um produto natural típico de um país militarizado; mas as armas só levam a uma coisa: guerras e violência, daí a exportação de guerras e violência e de seus efeitos, mais além da Palestina.

Nunca consultaram os asiáticos e os africanos no passado sobre a colonização e as invasões europeias, tampouco lhes consultaram agora nas Nações Unidas sobre as questões referentes a suas regiões, que são tão importantes para seu futuro. As decisões sempre foram, e assim continua acontecendo na maior parte das vezes, um privilégio do Ocidente, especialmente em relação à guerra e à violência. Se falar uma língua diferente, fizer planos de maneira autônoma, decidir por você mesmo e em virtude das opiniões do teu povo, especialmente no que se refere às questões centrais do consenso Washington/Ocidente, vai cair em desgraça, se tornará persona non grata, um terrorista.

Em seu filme Sombras de Goya, de 2006, o diretor tcheco Milos Forman nos lembra o interminável regime de inquisição sob o qual vivemos, que afeta a todos, mas que afeta especialmente os fracos. Em uma cena que quase descreve muitas das aventuras ocidentais no Terceiro Mundo, o rei Carlos IV reúne seus homens armados, encontra uma região para a caça, e ele e seus mais próximos apoiadores rodeiam a área escolhida e começam a disparar contra os pássaros; depois seus soldados/servos recolhem os pássaros caçados e voltam à cidade para exibir esses pássaros diante da multidão, que parece admirar a atitude agressiva do Rei e a forma como organizou a caça. Uma vez que o rei volta a seu palácio, o pintor Francisco de Goya está a ponto de terminar o retrato de sua esposa, a rainha María Luisa. Terminada a obra, ao olhá-la, a rainha explode de raiva e o rei chama Goya para lhe dizer que o retrato que pintou é um retrato feio. Por essa razão, lhe dá o castigo de ter que escutar o rei tocando violino e transformado as obras-primas de Beethoven em melodias penosas. O que o rei queria ensinar é que o retrato feio não era um reflexo fiel da rainha, mas sim uma falta de habilidade do pintor.

Ambos os exemplos ilustram bem muitas das políticas e práticas ocidentais contra os povos do Terceiro Mundo, considerados um lugar de caça, e onde os colonizadores exibem sua masculinidade admirada por muitos, e que serve para ilustrar uma grande parte das sádicas guerras, a última das quais é a atual guerra de Israel contra Gaza, na Palestina. A recusa em aceitar o produto da obra do pintor como um reflexo habilidoso da realidade que se vê é também a negação de se olhar de perto no espelho e ver o horror de ter que contemplar a realidade de alguém. É também uma recusa de considerar como os outros veem a realidade, pois essa realidade é a negação da natureza e das funções da maquinaria bélica e das dinâmicas de dominação que servem para estruturar a mentalidade de quem ocupa o poder no Ocidente, em primeiro lugar, quando se dirigirem a seus próprios povos e, depois, a todos os demais no Terceiro Mundo. Não é fácil que aqueles que detêm o poder renunciem a esta dominação e a práticas sádicas. Pelo menos é difícil que renunciem por meio da racionalidade, ainda que seja de todo ruim lembrar-lhes que quem semeia ventos colhe tempestades, e que todos que sobem acabam finalmente caindo.

Por outro lado, não devemos subestimar o poder do povo, e a canção com a qual este ensaio começava é ilustrativa do enorme potencial de um povo que continua defendendo sua vida e lutando:

Nós estamos bem em Gaza
Estamos bem na Palestina,
E você, como está?

* Magid Shihade é professor do Instituto Abu-Lughod da Universidad de Birzeit, na Palestina. Além de diversos artigos e capítulos de vários livros, é autor do recém-publicado Not Just a Soccer Game: Colonialism and Conflict among Palestinians in Israel (Não apenas um jogo de futebol: Colonialismo e conflito entre os palestinos em Israel), University Press. Participa na comissão editorial do Journal of Alternative Perspectives in the Social Sciences, Resistance Studies Magazine and Interface: A Journal about and for Social Movements (Periódico de perspectivas alternativas em Ciências Sociais, estudos de Resistência e Interface: Uma publicação sobre e para movimentos sociais).

Publicado originalmente em: http://www.jadaliyya.com/pages/index/8455/we-are-fine-in-gaza.-how-are-you