O combate à corrupção pode, em certas circunstâncias históricas, ser estimulado por manchetes, mas a manchete não combate por si a corrupção. A manchete serve mais ao moralismo servil e ao ódio irracional em lugar de concretamente mitigar o combate racional, institucional e eficaz à corrupção
Os casos do “mensalão”, Operação Porto Seguro e tantas outras noticias de investigações e ações judiciais contra integrantes e agentes do governo federal criam em parte da população a impressão de que o governo do PT é dos mais corruptos da história, para usar a desmedida expressão de alguns veículos quanto ao julgamento da ação 470. Por outro lado, a uma parcela da população fica a impressão da persecução indevida a Lula, Dilma, seus governos e partido. Isso pode ser verdade em relação à mídia na maior parte desses casos, mas o mesmo não pode ser dito dos órgãos de apuração que, na maioria das vezes, nada mais fazem que cumprir seu dever legal.
Em verdade os fatos são complexos. Envolvem sim uma postura disseminadora de ódio por parte de boa parte dos grandes veículos de mídia na forma como estes traduzem em versões os fatos. Trazem como manchete qualquer fofoca de bar, numa postura de evidente mau e anti-ético jornalismo, muitas vezes sem qualquer apuração real e excluindo a priori qualquer fato que contrarie a lógica moralista e espetacular do escândalo, por mais verdadeiro que se apresente. Por outro lado, muitas vezes tratam-se sim de fatos criminosos praticados por agentes públicos, que podem ocorrer em qualquer governo e país e que devem ser adequadamente apurados e punidos.
Se por um lado ninguém desconhece que temos uma mídia parcial, pouco plural e servil a interesses de nossas elites, propagadora do ódio de classe, do qual Lula tem sido há tempos a vítima predileta, de outro também ninguém desconhece que em nossos meios políticos e em nossa burocracia estatal vige uma cultura histórica de práticas corruptas das mais variadas estirpes e de cujo combate nosso desenvolvimento como Estado Democrático de Direito carece.
O combate à corrupção pode, em certas circunstâncias históricas, ser estimulado por manchetes, mas a manchete não combate por si a corrupção. Muitas vezes, a manchete serve mais ao moralismo servil e ao ódio irracional em lugar de concretamente mitigar o combate racional, cotidiano, institucional e eficaz à corrupção.
O verdadeiro combate à corrupção se realiza, como demonstra a experiência histórica global, com a formação de órgãos e instituições estatais independentes, fortes, bem remuneradas e profissionalizadas. Ao mesmo tempo, é preciso haver uma cultura social que acolha este combate, cortando na própria carne, aceitando, por exemplo, que o filho vá para a cadeia quando é pego bêbado dirigindo ou em qualquer outra prática delituosa. Não há Estado honesto a partir de uma sociedade desonesta.
Não se combate a corrupção com discursos moralistas, no mais das vezes hipócritas, mas sim com um duplo trabalho. Mudança da estrutura estatal de combate e mudança da cultura social.
Uma primeira consequência do início do combate à corrupção é o aumento de sua percepção pela população. Temos o perverso efeito de que o governo que promove a criação e implementação de órgãos realmente independentes de apuração é o que mais sofre as consequências políticas desta criação, pois corrupção é um mal humano, ocorre em qualquer governo. Quando não existem órgãos que apurem os crimes, a percepção de sua existência é bem menor que quando esses órgãos existem.
No Brasil, o combate à corrupção vem se ampliando desde a restauração da democracia, mas teve dois momentos marcantes: A promulgação da Constituição de 1988, que criou as normas básicas de independência do Judiciário e do Ministério Público, e o governo Lula, que criou as condições materiais para a real existência de uma Policia Federal independente e bem remunerada, um Ministério Público que fosse mais que um engavetador de investigações, ampliando de fato sua autonomia face ao Executivo, e pela implementação de nomeações ao STF de ministros não ligados politicamente ao Executivo, com isso fomentando sua independência.
O trabalho de combate à corrupção, no entanto, estagnou, exatamente por conta da ação exacerbadamente partidária de nossa mídia e pela inação do PT como partido de oposição nos Estados.
Ao contrário do Executivo e do Legislativo, que têm competências muito concentradas na União, nosso Judiciário e, por consequência, Ministério Público e Polícia Judiciária, têm competências descentralizadas pela Federação. Em verdade, a maior parte dos crimes de nosso Código Penal são de competência de julgamento e apuração dos Judiciário, Ministério Público e polícias estaduais.
Para que o aparelho estatal esteja pleno em termos de combate à corrupção as medidas do governo Lula teriam de se estender aos Esatdos membros da Federação, quais sejam de criação de fato de uma polícia independente e bem remunerada, um Ministério Público efetivamente autônomo face ao Executivo e um Judiciário não servil aos governadores.
Infelizmente estamos longe disso nos principais Estados da Federação. Polícias Judiciárias submissas ao Executivo por conta de legislações que não lhes conferem real autonomia, policiais pessimamente remunerados (o que faz a corrupção corroer esses instituições, como antes ocorria com a Polícia Federal), Ministérios Públicos que atuam em investigações contra prefeitos, em especial os da oposição, mas que engavetam quase tudo que diz respeito aos governadores, ainda são comuns.
Muitas vezes, membros das cúpulas dessas instituições vêm a ocupar cargos relevantes nos primeiros escalões. Enquanto Lula nomeou um PGR eleito pelos demais membros do MP Federal, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), por exemplo, nomeou o segundo colocado na respectiva eleição do MP Estadual, prática que evidentemente não estimula a independência da instituição.
Os Judiciários Estaduais têm extrema dependência das verbas orçamentárias do Executivo para arcar com seus custos. O que é um excelente salário em termos nacionais não o é num Estado como São Paulo, por exemplo, com alto custo de vida. O sistema de teto salarial puniu os juízes em fim de carreira, exatamente aqueles competentes para o julgamento de governadores e demais autoridades superiores. Tudo isso dificulta a realização da independência dos Judiciários Estaduais.
O que se observa é que nada foi feito no âmbito dos principais Estados da Federação para implementar medidas de real e permanente combate à corrupção. E a mídia se mostra silente e complacente quanto a isso por óbvias simpatias partidárias com o núcleo PSDB/PFL que governa Estados como São Paulo, Minas Gerais etc, embora Estados governados pelo PT também não sejam necessariamente exceção a esta regra.
A mídia nada fala quanto à inação de medidas legislativas que confiram independência às polícias estaduais, que aumentem sensivelmente suas remunerações trazendo-as ao nível da Polícia Federal, que estipulem real independência aos MPs Estaduais e ampliem o orçamento do Judiciário cobrando também do governo federal alteração na política de remuneração dos juízes.
Também a mídia nada apura nos governos estaduais, como se fossem ilhas de honestidade. Não é o que ocorre. O que há é ausência de percepção pela ausência de órgãos realmente independentes de apuração e por uma mídia “chapa branca” regional. Nos Estados, ela não investiga, ou por não mais saber investigar sem apoio de investigações estatais ou por não querer investigar por simpatias partidárias dos donos dos veículos de comunicação.
Num momento em que a mídia e parte da população comemora os ultra duvidosos resultados do julgamento do “mensalão” é importante lembrar que ele não teria ocorrido:
– sem a investigação independente da Polícia Federal no modelo criado pelo governo Lula. A antiga PF jamais realizaria uma investigação assim contra figuras importantes do partido governista, isto era impensável antes de Lula;
– sem a atuação do atual PGR nomeado a partir de eleição entre os membros de sua carreira. Tendo sido o mais votado, ele não foi escolhido por qualquer critério pessoal ou ideológico de Lula, mas sim pelo fato de ter sido o mais votado por seus pares;
– sem a atuação de Joaquim Barbosa e outros ministros nomeados por Lula e Dilma a partir de critérios republicanos, como demonstra até o resultado do julgamento. Mesmo que injusto, ninguém o acusa de influenciado ou influenciável por qualquer injunção do Executivo
Este modo de agir de Lula, como estadista, aquele que pensa no futuro do Estado e não em seus interesses ocasionais como governante, é que precisa ser reproduzido pelos governadores, trazendo os Estados ao esforço empreendido pela União no sentido de implementar e manter estruturas estatais permanentes, independentes e bem remuneradas de combate à corrupção, sem medo de que o aumento natural de percepção gere prejuízos. O pais agradece e a história saberá reconhecer.
Pedro Serrano, CartaCapital