Diz-se que o crime perfeito não existe. Como ainda não se sabe se isso é verdade ou não, a decisão da Suprema Corte chilena de investigar a morte do prêmio Nobel de literatura Pablo Neruda durante a ditadura de Pinochet pode ser o mais novo exemplo de como o tempo não foi o suficiente para encobrir um assassinato
O escritor Pablo Neruda, membro do Partido Comunista chileno e Prêmio Nobel em 1971, está entre os poetas de língua espanhola mais lidos no mundo. Milhões de pessoas foram atraídas por “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. Quando Neruda morreu, duas semanas depois do dia 11 de setembro de 1973, data do golpe de estado que tirou do poder o presidente eleito Salvador Allende, a maioria acatou o motivo da morte como sendo derivado de uma aceleração do desenvolvimento do câncer de próstata diagnosticado um ano antes. O poeta era amigo de Allende e teve sua famosa casa em Isla Negra, no litoral chileno, na época a cerca de duas horas da capital Santiago, invadida pelos militares. Foi também em Isla Negra onde Neruda escreveu suas memórias, que terminam com uma condenação amarga ao golpe do general Augusto Pinochet.
Na época, Manuel Araya tinha 20 anos e tinha sido designado pelo Partido Comunista como assistente privado e motorista de Neruda. Ele contou à Al Jazeera que um dia antes de o livro ser terminado, ele acompanhou o escritor e sua esposa Matilda à Clínica Santa Maria, em Santiago.
O então embaixador mexicano no Chile confirmou mais tarde a informação passada por Araya de que Neruda pretendia viajar ao México para fazer oposição ao governo de seu país a partir do exterior. Ele confirmou também que o governo mexicano havia enviado um avião para buscar ele e outros futuros exilados no Chile. O problema foi que a junta militar não pretendia facilitar a concessão de um passe de salvo-conduto para o escritor. Ele era o cidadão chileno mais conhecido mundialmente depois de Allende e os militares tinham certeza de que ele causaria problemas ao regime no exterior.
Por isso – segundo Araya – a ideia era levar Neruda ao hospital para que se pudesse argumentar problemas de saúde e assim conseguir um passe de salvo-conduto humanitário. O plano funcionou e o passe foi emitido. No entanto, o poeta nunca saiu vivo da clínica.
Quase 40 anos passaram desde sua morte. Porém, quando Manuel Araya conta sua história, parece que ele ainda está vivendo ela. Ele afirma que, enquanto retornava com a esposa de Neruda à Isla Negra para pegar uma mala do poeta, recebeu uma ligação de Neruda. “Ele parecia realmente aborrecido e me disse que alguma coisa tinha acontecido, que o médico entrou em seu quarto enquanto ele dormia e injetou algo em seu estômago que o fez começar a passar mal imediatamente. Ele, de repente, sentiu muito calor, ficou vermelho, teve febre e pediu para que voltássemos à clínica”, descreve.
Quanto Araya voltou, a polícia secreta já esperava para prendê-lo. Ele foi levado ao Estádio Nacional de Santiago, onde centenas de pessoas contrárias à ditadura foram presas e torturadas. Foi lá onde ficou sabendo da morte de Neruda, poucas horas depois de ter recebido a injeção.
Araya afirma que sempre teve certeza de que o escritor tinha sido assassinado, mas não se atreveu a dizer nada até 1990, quando o Chile voltou a ser uma democracia. Na época, ninguém acreditava no ex-motorista. A esposa de Neruda morreu nessa época. Ainda que em suas memórias ela tenha escrito que “Pablo não estava pronto para morrer ainda”, não havia nada de conclusivo.
Mas quando histórias igualmente “inacreditáveis” de assassinos de alto escalão do regime militar do Chile foram provadas, o advogado Eduardo Contreras começou a levar a versão sobre a morte de Neruda a sério. Afinal, em um primeiro momento, poucos acreditaram em Carmem Frei, filha do ex-presidente Eduardo Frei, quando ela alegou, em 1982, que seu pai tinha sido envenenado na mesma clínica onde o poeta morreu. O ex-presidente cristão democrata teve forte influência tanto no país como no exterior e, mesmo tendo aprovado inicialmente o golpe militar, começou uma campanha pela resistência contra a ditadura antes de morrer.
Há dois anos, seis pessoas foram presas e acusadas de assassinato do ex-presidente depois da descoberta de traços de veneno durante a exumação do corpo. A investigação também apontou a existência de uma rede secreta de armas químicas desenvolvidas pelo regime de Pinochet que era usada em larga escala para eliminar “inimigos”. As drogas também eram vendidas a outros países sob ditaduras militares.
No caso de Neruda, pode ser que não seja fácil provar o assassinato. Segundo Eduardo Contreras, depois de cerca de 40 anos, é provável que a identificação de traços de veneno seja muito difícil, já que seu corpo – enterrado voltado para o oceano em Isla Negra – está, provavelmente, em grau avançado de decomposição. Porém, Contreras contou à Al Jazeera que podem haver outros indicativos de asssassinato incluindo documentos perdidos e inconsistências no relatório da autópsia.
“O câncer de Neruda ainda estava em estágio inicial”, afirma. “O hospital diz que ele morreu em estado catatônico, mas, na verdade, ele chegou até mesmo a sair de casa alguns dias antes de morrer e recebeu inúmeras visitas enquanto planejava sua viagem para o México”.
Contreras também afirma que pessoas que trabalharam na Clínica Santa Maria sabiam que o poeta tinha sido assassinado. “Algumas me contaram. Mas ainda tinham muito medo de serem mais explícitas. Espero que essas pessoas percam seu medo enquanto os culpados ainda estão vivos”, desabafa.
O promotor público designado especialmente para o caso deve emitir um pedido de exumação em breve, apesar da oposição violenta da Fundação Neruda, que administra os museus nas três casas que pertenceram ao autor, incluindo Isla Negra.
Mesmo que teorias conspiratórias devam ser tratadas com cautela, independentemente do resultado do inquérito, parece que o regime de Pinochet tinha, no mínimo, meios e motivos para precipitar a morte de um dos poetas mais famosos do mundo.
Lucia Newman. Tradução de Helena Gertz. Link original aqui (Aljazeera)
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