'A doméstica que faz café, almoço, jantar e cuida de alguém deve acabar'. Ministra do TST vê "alvoroço" nas críticas dos patrões à nova lei do trabalho doméstico e explica que o modelo da empregada 24 horas por dia disponível é incompatível com a Constituição
Ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Delaíde Miranda Arantes vê “alvoroço” na reação contrária à nova lei das domésticas, que foi promulgada nesta terça-feira (2). Afinal, a jornada máxima de oito horas diárias, direito que a categoria conquistará em 2013, é uma regra que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabeleceu há nove décadas, em 1919.
“Eu tenho dificuldade para entender o porquê de tanta reclamação com relação à fixação da jornada. Isso só pode ser em razão dos hábitos, que ainda persistem, de ter um empregado doméstico dia e noite em casa”, diz Delaíde. “Aquele modelo antigo, daquela pessoa que ficava na família 24 horas à disposição, não é compatível com as garantias constitucionais.”
Na entrevista a seguir, a ministra do TST ressalta que a nova lei contribui, mas é ainda insuficiente para garantir o “mínimo necessário” de igualdade das domésticas em relação aos demais trabalhadores. Falta, argumenta Delaíde, a ratificação da Convenção 189 da OIT, que garante, por exemplo, o direito de o empregado doméstico ter informações claras sobre o seu contrato de trabalho – por escrito, se possível. O documento está em fase de ratificação pelo Brasil.
Colocar no papel o que a doméstica deve fazer e registrar horários de entrada, saída e intervalo – como se faz com trabalhadores de outras categorias – é, aliás, a melhor maneira de evitar ações judiciais em decorrência da nova legislação.
“Quando eu falo por escrito, pode ser um contrato informal. Não precisam ser com cláusulas digitadas como é o do trabalho urbano”, diz Delaíde, que não vê razão para o número de processos crescer neste primeiro momento.
“[A nova lei] entra em vigor daqui para adiante, não cria hora extra no intervalo retroativo, então não vejo razão para o aumento do número de demandas trabalhistas. Agora, é importante que se inicie um diálogo, e que seja um diálogo franco, como é próprio da relação de trabalho doméstico.”
Leia abaixo os trechos da entrevista que foi concedida ao Portal iG
Qual a importância das demandas de empregadas domésticas hoje na Justiça do Trabalho, em termos de quantidade, e como ela tem evoluído?
Delaíde Miranda Arantes: Nós não temos dados oficiais, mas de observação. É um número pequeno de demandas de trabalho doméstico. Mesmo porque a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não se aplica [aos domésticos], então fica resumido à questão da [estabilidade] de gestante, vínculo de emprego. E não se percebe que houve aumento ou diminuição. Há mais de 20 anos é um número pequeno. A partir da Constituição de 1988 e até o ano de 2006 houve uma demanda um pouco maior em razão da discussão sobre garantia de emprego da gestante.
Mas depois veio a lei de [11.324] de 2006 [que estende às domésticas a estabilidade de emprego em caso de gravidez] e pacificou.
Quais outros direitos ainda dependem de uma decisão judicial para serem garantidos?
Delaíde: A maior parte das ações trabalhistas são para reconhecer se há relação de emprego ou não, pois há uma confusão grande entre diarista e empregada doméstica.
Há um entendimento no TST de que três dias permitem o reconhecimento de vínculo. É possível que o Tribunal edite uma súmula sobre isso?
Delaíde: Não, e não editou até hoje porque não é [um entendimento] pacífico. Há algumas decisões de algumas Turmas no sentido de que até dois dias não é relação de emprego ou coisa assim. Acontece que eu, por exemplo, defendo que não é a questão do número de dias e sim outros pressupostos, como pessoalidade e a natureza da relação de emprego.
A lei 11.324/2006 pacificou a questão da estabilidade em caso de gravidez. A nova lei das domésticas, a ser promulgada nesta terça-feira (2), terá esse efeito de reduzir as ações trabalhistas de empregadas contra seus patrões?
Delaíde: Não acho que vá alterar, pelo menos de imediato.
Existe algum outro direito que esteja sendo demandado em que o TST caminha para edição de uma súmula?
Delaíde: Não, porque em algumas ações aqui, o empregado doméstico reivindica por exemplo a multa por atraso na recisão contratual, que é um direito assegurado no artigo 477 da CLT. A Justiça do Trabalho não concede, com o fundamento de que a CLT não se aplica aos trabalhadores domésticos.
A nova legislação vai garantir um conjunto novo de direitos, mas as domésticas vão continuar a ser uma categoria diferente de trabalhadores. A doméstica deve ter uma legislação específica ou essa separação só foi negativa para ela até agora?
Delaíde: Do ponto de vista pessoal, acho que não deveria haver uma legislação específica. Tanto que defendi até pouco tempo atrás que bastava revogar da alínea A do artigo 7º da CLT [que exclui os empregados domésticos dessa legislação] e acrescentar, no artigo 7º da Constituição [que garante os direitos básicos do trabalhador], o trabalhador doméstico, junto com os rurais e os urbanos. Mas esse é um processo que remonta a mais de 70 anos. A evolução legislativa é um processo lento. Você imagina, não estamos tratando de tornar os direitos iguais e já está esse alvoroço todo na sociedade por parte de alguns segmentos de empregadores domésticos. Eu considero que essa evolução que vem com a emenda põe o trabalhador doméstico em condição de igualdade com os urbanos e os rurais, guardadas as especificidades. Porque você precisa ter em mente também que é um serviço que não é prestado para o setor produtivo, para uma multinacional nem para uma grande ou média empresa. Então, admite-se certas diferenças em razão das peculiaridades, mas é preciso conseguir a igualdade necessária para dar cumprimento inclusive à Constituição Federal.
Com a alteração atual a senhora acredita que se chega ao pé de igualdade necessário entre o trabalhador doméstico e os demais?
Delaíde: Ao mínimo necessário, sim. Mais a Convenção 189 da OIT, mais a legislação que já existe, [a nova lei] assegura o tratamento condigno a igualdade e o mínimo necessário para os trabalhadores domésticos. [A Convenção] está em processo de ratificação. Já há iniciado o processo de ratificação.
Como forma de evitar que a solução das diferenças vá para a Justiça, o que a senhora recomenda, quer aos patrões, quer aos trabalhadores, no que toca às adaptações necessárias para fazer valer os novos direitos?
Delaíde: A minha recomendação já está na Convenção 189. É procurar fazer por escrito as tratativas do trabalho doméstico com relação aos horários de entrada e de saída, aos intervalos, complementar, se considerar necessário, com uma folha de ponto e combinar todos os pontos: quais os serviços a serem executados, as formas de execução. Quando eu falo por escrito pode ser um contrato informal, não precisa ser com cláusulas digitadas, como é do trabalho urbano. Mas é uma medida preventiva fazer as combinações por escrito. Agora, um passivo [judicial] de imediato não acredito que vá criar, porque as alterações não têm efeito retroativo. É preciso que haja diálogo e haja combinações bem feitas entre empregado e empregador para não gerar um passivo com [o passar do] tempo. Entra em vigor daqui para adiante, não cria hora extra no intervalo retroativo, então não vejo razão para o aumento do número de demandas trabalhistas. Agora, é importante que se inicie um diálogo, e que seja um diálogo franco, como é próprio da relação de trabalho doméstico.
A senhora já foi empregada doméstica. Qual direito, dos que foram garantidos à empregada doméstica desde então, a senhora àquela época já julgava primordial?
Delaíde: Eu trabalhei em 1968, 1969. A lei do trabalho doméstico é de 1972. Então, não havia nem a garantia do salário mínimo. Agora, eu considero que um dos pontos mais importantes é a jornada. A convenção da OIT que fixa a jornada máxima de 48 horas semanais e oito diárias é de 1919. Estamos com um atraso de quase um século para agora vir a regulamentar a jornada do trabalhador doméstico e esse para mim é o ponto.
Tem havido bastante preocupação quanto ao aumento no número de processos. A que a senhora credita essa reação?
Delaíde: É claro que nós, como integrantes da sociedade e do meio jurídico, ainda estamos observando qual é mesmo o movimento. Mas, do que eu tenho observado, isso confirma as afirmações que tenho feito, de que trabalho doméstico traz resquícios da escravidão. Eu tenho dificuldade para entender o porquê de tanta reclamação com relação à fixação da jornada. Isso só pode ser em razão dos hábitos, que ainda persistem, de ter um empregado doméstico que fique o dia e a noite em casa. É comum você ver nos classificados de jornal o anúncio “procura-se empregada doméstica que não estude e que durma no emprego”. Ora, essa empregada, em regra, não inicia sua jornada às 18 horas. É uma empregada que prepara café da manhã, almoço, jantar, e que às vezes faz companhia para uma pessoa com problema de saúde. Esse tipo de situação precisa acabar e acho que a reclamação maior é em torno dessa questão. A empregadora que trabalha durante o dia e estuda durante a noite vai precisar de duas babás. Vamos ter de mudar na nossa forma de encarar o trabalho doméstico. Encarar o trabalho doméstico que tem por trás dele um ser humano, uma pessoa que precisa progredir, que precisa estudar, que tem família. Aquele modelo antigo daquela pessoa que ficava na família, 24 horas à disposição, não é compatível com as garantias constitucionais.
O trabalho doméstico não está entre as maiores demandas do TST, portanto?
Delaíde: Para você ter uma ideia: são oito turmas (no TST). Eu integro a sétima. Eu assumi há dois anos e julguei em torno de 12 mil processos. Desses, eu devo ter julgado uns cinco de domésticas. E a distribuição é feita para os ministros em número equivalente. Então só aí dá para ter uma ideia. Não são muitas demandas. Deve estar entre as menores.
Por Vitor Sorano
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