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Angela Davis: “racismo de hoje é mais perigoso”

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“Enfrentamos hoje um racismo mais perigoso”. Confira a entrevista com a ativista, professora da Universidade da Califórnia e ex-pantera negra Angela Davis

Os gestos sutis e comedidos de Angela Davis, 68, enquanto conversa, quase não lembram a imagem que correu o mundo da jovem revolucionária que integrou os Panteras Negras, nos Estados Unidos. Sua prisão, após envolvimento numa ação para libertar jovens negros acusados de matar um juiz, mobilizou o mundo nos anos 1970.

Angela Davis. (Foto: Raul Spinassé / A Tarde)

Tema de músicas de John Lennon e Yoko Ono (Angela), além dos Rolling Stones (Sweet Black Angela), a hoje professora da Universidade da Califórnia continua ativista. Seu espaço de luta é o movimento anticarcerário e a mobilização de mulheres. Em ambos, ela enfatiza que o racismo continua muito presente, mesmo no país que reelegeu como presidente Barack Obama. “Pessoas que estão encarceradas dizem que um homem negro na Casa Branca não é suficiente para anular um milhão de homens negros na casa-grande, ou seja, no sistema carcerário”. Ela conversou com a Muito na sua quarta passagem pela Bahia, onde teve como principal compromisso participar de um fórum na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira.

Como foi a sua experiência no Fórum 20 de Novembro, no campus da Universidade Federal do Recôncavo, em Cachoeira?

Fiquei bastante impressionada com o evento, mas também em perceber como a universidade se expandiu. É uma instituição pública federal majoritariamente negra, com ações afirmativas. Deveria ser um exemplo para os EUA. Lá, as ações afirmativas estão sendo questionadas e abolidas.

No Brasil, vivemos um momento em que o entendimento sobre a importância das ações afirmativas consolidou-se na universidade e nos movimentos sociais. Mas parte da sociedade e da mídia tem dúvidas. Qual a situação dessas medidas nos EUA?

No contexto atual, o Brasil está bem à frente dos Estados Unidos, no que diz respeito à implementação das ações afirmativas. Lá, nos anos 1990, vários programas nesse sentido foram juridicamente eliminados.

Quais as principais consequências desse processo?

Há mais homens negros encarcerados nos EUA do que nas universidades. Há um milhão de homens negros na cadeia. Temos que avaliar o que leva um homem negro a chegar a esse ponto.

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Se não há oportunidade para ingresso no setor da educação formal, se não há assistência à saúde, condições de habitação e de lazer, a prisão se torna a única alternativa viável. Fiquei muito feliz em saber que o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil manteve o programa de ações afirmativas nas universidades brasileiras.

Este é um ponto-chave para o combate às desigualdades?

As políticas de ações afirmativas, quando praticadas repetidamente, têm um poder de transformação bastante significativo. Existe a pressuposição de que as ações afirmativas estão beneficiando indivíduos de tal maneira que prejudicam outros. Mas essa é uma interpretação incorreta sobre as ações afirmativas. Essas ações não dizem respeito à ascensão individual. O objetivo é a ascensão de comunidades que foram afetadas desproporcionalmente por legislações e pelo racismo que remetem à época da escravidão.

Quando falamos em ações afirmativas, destacamos a formação de uma classe média negra. No Brasil, ela é incipiente. É possível fazer uma comparação com o contexto americano?

É uma comparação difícil, pois são contextos históricos diferenciados. A formação da classe média negra americana começou a ocorrer no período pós-abolição. No processo de segregação racial, houve uma relação íntima entre a classe trabalhadora e parte da população. Eram professores negros que davam aulas em escolas segregadas, por exemplo. O dinheiro circulava entre eles. A partir do momento em que houve um desmantelamento dessa estrutura formal de segregação racial, começaram a emergir negros e negras com alto poder aquisitivo.

Então, mesmo na sociedade americana, com uma classe média negra mais consolidada, os obstáculos persistem?

Sim. Ativistas mais radicais reconhecem que não é possível falar da comunidade negra da mesma forma que costumávamos falar antes. A questão política tornou-se hoje muito mais importante que o recorte racial. É importante estabelecer alianças com outras comunidades. Uma das lutas mais importantes pró-direitos civis nos EUA é o movimento em defesa dos imigrantes que estão ilegais no país. Há também a luta que surgiu a partir da fobia ao Islã, em função da guerra contra o terror. É preciso que haja o engajamento de negros progressistas que expressem sua solidariedade nesse âmbito.

A eleição e reeleição de Obama é vista no Brasil como indicativo de que o problema racial nos EUA foi superado. Essa impressão está correta?

Pessoas que estão encarceradas dizem que um homem negro na Casa Branca não é suficiente para anular um milhão de homens negros no sistema carcerário. É preciso enfatizar que muitos racistas continuam a protestar pelo fato de Obama ocupar essa posição. De vários modos, continuamos a experimentar, no século 21, um racismo muito mais perigoso do que o racismo institucional do passado. Trata-se de um racismo que está arraigado nas estruturas. É necessário elaborar um novo vocabulário para que possamos acessar as novas estruturas do racismo.

É este o cenário que a levou à luta contra o sistema carcerário?

Sim. Se observarmos os números desproporcionais de negras e negros nesse sistema, podemos constatar como o racismo direciona o que chamamos de complexo industrial carcerário. Não é somente em função de a prisão ser um espaço no qual se contêm aqueles que se tornaram supérfluos no contexto do modelo econômico contemporâneo. Esse processo americano tornou-se padrão, ele é pautado pelo racismo numa esfera global.

A senhora tem um ativismo brilhante também na área de gênero. Na Bahia, as mulheres sustentam ofícios em que são majoritárias, como baianas de acarajé e marisqueiras. Como esses saberes tradicionais podem auxiliar o movimento?

As mulheres tornaram-se líderes comunitárias e, cada vez mais, assumem cargos de liderança. É importante que acadêmicos treinados na estrutura da universidade reconheçam o conhecimento produzido para além das fronteiras dessas instituições. O feminismo, tanto no âmbito acadêmico, mas também como metodologia de luta, enfatiza um tipo de interdisciplinaridade. O conhecimento acadêmico deve estar em diálogo constante com as formas de luta. As pessoas associam o movimento pró-direitos civis dos EUA à imagem de Martin Luther King. Mas, na verdade, foram mulheres negras que iniciaram o movimento. Tratava-se, especificamente, de trabalhadoras domésticas. Foram elas que tiveram uma visão coletiva e acreditaram que era possível construir uma sociedade sem racismo. Em 1955, essas mulheres recusaram-se a utilizar um ônibus em Montgomery e esse boicote resultou no desmantelamento do racismo institucional no sul dos EUA. Devemos um tributo a essas trabalhadoras anônimas, domésticas e lavadeiras, que atuavam em casas de brancos.

Revista Muito