Ele do Sul e ela do Norte: coreanos vivem “unificados” no Brasil há 50 anos. Soon Ja Choi quase foi baleada ao fugir de Pyongyang; Kong Pil Choi veio à América do Sul como correspondente
A trajetória do sul-coreano Kong Pil Choi, de 73 anos, e da norte-coreana Soon Ja Choi, de 71, é uma antítese da história das Coreias. Enquanto os países vivem divididos e em constante tensão, eles, que aprenderam precocemente a necessidade de fugir e lutar para sobreviver, vivem uma relação de amor cujas barreiras já foram quebradas há tempos.
Ambos nasceram em Shenyang, no nordeste da China, quando seus pais coreanos se refugiaram no país fugindo da invasão japonesa à Península, entre 1910 e 1945. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o país dividira-se: cada um dos ex-Aliados – Estados Unidos e União Soviética – assumiu um lado do Paralelo 38 N. A Guerra Fria começara.
Neste tempo, suas famílias retornaram aos locais de origem: Kong, aos 5 anos, viajou para Seul, que se tornara capital da Coreia do Sul, enquanto Soon, com 3 anos, foi para Pyongyang. Por “jus sanguinis”, os coreanos assumem a nacionalidade dos pais, independentemente do solo em que nasceram.
Soon passou três anos no lado norte da fronteira e vivenciou o regime instalado por Kim Il-song, avô de Kim Jong-Un, atual líder do país. “Na escola, onde estudei a alfabetização, havia uma estátua gigante do ‘general’ e todos os dias quando chegávamos lá tínhamos que cumprimentá-lo e cantávamos músicas em reverência a ele”, recorda Soon, tentando cantarolar um trecho da canção.
Contudo, nesta mesma época, a família de Soon decidiu cruzar o paralelo em direção ao sul, apesar de todo perigo que isso representava. “Pagamos a um atravessador, que, além do dinheiro, ficou com nossa casa e tudo que estava nela. Saímos um de cada vez, apenas com a roupa do corpo numa noite sem lua”, explica a norte-coreana, que tinha de fugir à noite e esconder-se durante o dia.
-
O que, finalmente, quer a Coreia do Norte?
-
Coreia do Norte: “paz impossível, guerra improvável”
-
Michael Moore: Por que nós, estadunidenses, assassinamos tanto?
“Durante a fuga, minha mãe e eu fomos capturadas e, enquanto estávamos sendo levadas a um galpão, fingi estar com dor de barriga e nos deixaram ir a um matagal próximo. Foi aí que nós fugimos correndo. [Os militares] atiraram diversas vezes, mas não nos acertaram”, conta Soon, fazendo o gesto da metralhadora. Dias depois conseguiram atravessar e encontrar com o pai e o irmão, que estavam do outro lado da fronteira. “Até hoje não tenho mais contato com meus familiares que vivem em Pyongyang, não sei se morreram ou se estão vivos”, afirma ela.
Enquanto isso, norte-americanos e soviéticos mantinham um atrito velado. Ambos reivindicavam mais autonomia no território coreano. Diante disso, o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) convocou uma reunião para tentar solucionar o impasse na Península. Os soviéticos não compareceram alegando suposto favorecimento aos interesses dos Estados Unidos. No dia 25 de junho de 1950, eclodiu a Guerra da Coreia. À época, Kong tinha 10 anos, Soon, 8.
Embora ainda não se conhecessem, a lembrança que os dois têm dessa época é a mesma, de destruição e pânico. “Era um domingo de manhã, Seul estava sendo bombardeada, casas pegando fogo, corpos pelo chão e nós fugíamos correndo, sem destino. Me perdi dos meus pais e fui encontrada por meus avós, que cuidaram de mim por vários meses”, relata Soon, que após um hiato de silêncio, completa: “Pensei que meus pais haviam morrido e eles pensavam o mesmo de mim”. Seu marido acrescenta. “Havia tantos corpos empilhados feito muros e estendidos, que mal conseguia ver o chão. É terrível a sensação de pisar em cadáver”, diz Kong, seguido de um leve arrepio.
Meses depois do início dos conflitos, Kong, com 11 anos, teve de ir para o front. O sul-coreano carregava balas de canhão para a artilharia. “Eu tinha que carregar balas de 25 kg, 50 kg por 100, 200 metros para municiar os canhões”, explica.
Em 25 de julho de 1953, a guerra acaba por meio do Armistício de Panmunjon, que nunca convertera-se em tratado definitivo de paz. De acordo com o Serviço Exterior de Informações da Coreia, cerca de 3 milhões de coreanos ficaram desabrigados e outros milhares se separaram da família até hoje.
Brasil
Sete anos após o término da guerra, Kong e Soon se conheceram numa igreja evangélica, em Seul, e, em pouco tempo, começaram a namorar. Ele tinha 20 anos, ela, 18. Em meio a conversas, descobriram que haviam nascido e morado no mesmo bairro e na mesma rua, em Shenyang, na China. Em 1963, casaram-se, e no ano seguinte tiveram o primeiro filho e vieram ao Brasil. Kong, que era jornalista, foi transferido ao país para trabalhar como correspondente do Jung Ang Ilbo [Diário Central da Coreia].
Por quatro anos os Chois viveram em Brasília – em plena construção –, no Rio de Janeiro e em São Paulo – onde tiveram uma filha. À época, o Brasil vivia a ditadura militar (1964-1985). Kong conta que foi detido três vezes pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) por descumprir a ordem de um documento que assinara ao chegar ao País, no qual constava que ele não poderia escrever sobre “o governo militar, a vida dos generais e a igreja católica”. Saiu ileso, diz.
Às vésperas de retornar a Seul, Kong conheceu o economista Celso Furtado, que o ajudou na produção de uma reportagem sobre a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste). Segundo o sul-coreano, Furtado, idealizador da Superintendência, lhe cedera um jipe, um avião tipo teco-teco e um tenente que falava inglês.
Ele, então, percorreu nove estados em 15 dias, apaixonou-se pelo Nordeste e, quando finalizou o material, enviou a carta de demissão ao jornal. Decidiram que viveriam no Recife, onde, de fato, se radicaram e estão há 42 anos. “As constantes ameaças de guerra e o calor humano dos nordestinos nos fizeram ficar”, argumenta Kong. Sua esposa concorda. Ela é proprietária de um restaurante de culinária coreana na capital pernambucana. Ele, maestro, médico oriental e membro do Conselho Consultivo de Unificação Nacional das Coreias.
Retórica norte-coreana
Seis décadas após o fim da guerra, o mundo está novamente apreensivo com a situação na península. Apesar do armistício, as ameaças recíprocas nunca deixaram de existir. Calejado, Kong desdenha da retórica do norte-coreano Jong-Un. “Isso tudo não passa de show. Na verdade, o que ele quer é ganhar o apoio dos militares e da população contra um inimigo externo, mas é difícil que haja guerra”, argumenta.
Ademais, Kong acredita que em longo prazo o líder norte-coreano vai promover uma abertura no país. “Jong-Un foi educado na Suíça, com cultura ocidental, e já demonstrou que possui hábitos e atitudes diferentes dos demais, como aparecer em público com a esposa [Ri Sol-ju]”, relata.
Soon, por sua vez, comenta que seus familiares na Coreia do Sul não se mostram preocupados com o possível ataque do vizinho do Norte. “Eles dizem que estão tranquilos e que está tudo bem em Seul. Pedem para não nos preocuparmos”, afirma.
Uma vez por ano, o casal viaja a Seul para visitar a família, mas ela confessa que tem medo de ir a Pyongyang. “Tenho medo de não sair viva de lá”, diz a norte-coreana, com um olhar perdido. Às vésperas de completarem 50 anos de casados, em maio, os Chois, que são filhos de uma nação dividida, são a prova de que a Coreia do Sul e a do Norte podem viver em harmonia.
Marcelo Montanini, Opera Mundi