Hugo Chávez por García Márquez. Escritor colombiano e ex-líder venezuelano se conheceram em Havana
Desde 5 de março, abundam no planeta midiático as notícias, os artigos e as análises sobre o panorama político da Venezuela. Textos que provavelmente estavam prontos e engavetados, à espera do anúncio da morte de Hugo Chávez. Também não faltam as tentativas de biografar a trajetória do presidente para chegar ao poder, de imaginar o chavismo sem Chávez e de resgatar fatos históricos que talvez lancem uma luz sobre o futuro do país. Grande parte desse esforço é válido, mas uma pergunta continua ecoando sem resposta: quem era Chávez?
É importante ressaltar: nem todas as perguntas foram feitas para ser simplesmente respondidas. Embora seguir os rastros de 100% delas seja sem dúvida o que há de mais relevante na nossa existência aqui, neste mesmo planeta onde somos varridos por uma enxurrada de notícias que serão rapidamente esquecidas, como água de chuva.
Passeando pela internet em busca de um esforço mais humano e portanto talvez mais perene de perfilar o Hugo, eis que me encontro com um texto em espanhol que anda circulando muito ultimamente, com o título original de “O enigma dos dois Chávez”. Data de 1999, quando Chávez foi eleito democraticamente presidente pela primeira vez, e seu autor é alguém sabe bem como se inventam os grandes personagens: o escritor colombiano Gabriel García Márquez.
García Márquez e Chávez se conheceram em Havana, ao redor de diferentes compromissos de um e de outro com Fidel Castro. Subiram juntos a um avião da Força Aérea Venezuelana para viajar a Caracas, e aproveitaram as horas mortas para falar da vida. Como bem se sabe, um político talentoso sabe falar, e um bom escritor sabe ouvir. O que era um bate-papo virou “uma boa experiência de repórter em repouso”, conforme escreveu García Márquez, e, para nós, um par de linhas capazes de invocar a sensação de que Chávez era uma pessoa e não somente o primeiro dos chavistas.
Era inevitável para o colombiano não pensar em 4 de fevereiro de 1992, e ele trouxe para o papo a ocasião em que Chávez liderou um levante cívico-militar contra o governo venezuelano daquele então. Já naquele tempo, comenta García Márquez, difundia-se “a imagem de déspota através dos meios”, e ele se sentia influenciado por ela, ainda que quisesse ampliá-la.
“Chávez se rendeu, com a condição de que o deixassem dirigir-se, ele também, ao povo por televisão (…). O jovem coronel venezuelano, com boina de paraquedista e sua admirável facilidade de palavra assumiu a responsabilidade do movimento”, escreve García Márquez sobre o discurso da derrota que muitos acreditam ter sido, na verdade, o primeiro passo da campanha que embalou sua eleição menos de nove anos depois.
O texto, de maneira geral, se vale se um par de episódios marcantes na vida de Chávez – o levante de 1992, a fundação do movimento bolivariano no qual se associou com colegas militares, o impacto que teve a morte de Salvador Allende para seu despertar político, sua tentativa de resgatar o legado ao bisavô, suposto guerreiro em prol de causas inspiradas também por Simón Bolívar – para contar entre uma linha e outra amenidades que desenham um ser humano.
Descobrimos, talvez já sabendo de um ou outro detalhe, que Chávez foi filho de professores de primária, que vendeu doces e frutas no semáforo, era leonino (“signo do poder”), recitava de memória poemas de Neruda e de Walt Whitman, foi pintor de quadros, músico de serenatas, jogador de beisebol e sempre um pouco obcecado em cada tarefa que se impunha.
De que serve tudo isso? Politicamente, de nada. Mas aí resgatamos a ideia de uma esquecida condição humana e lembramos que quem não resistiu a um câncer no último 5 de março foi uma pessoa. A viagem de García Márquez no avião a Caracas se deu justamente a isso: descobrir o homem, sem ter que eliminar o personagem. “Me estremeceu a inspiração de ter viajado e conversado a gosto com dois homens opostos. Um a quem a sorte inveterada oferecia a oportunidade de salvar seu país. E o outro, um ilusionista, que podia passar à história como um déspota mais”, conclui o escritor.
Camila Moraes, Opera Mundi
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