Osvaldo Negrini Neto, perito, afirma que houve esforço da PM para apagar vestígios da ação no Carandiru: "o Ubiratan morreu se achando um herói"
Osvaldo Negrini Neto, 63 anos, trabalhou na Polícia Civil de São Paulo entre 1974 e 2010. Hoje está aposentado. Perito criminal, chefiava a equipe especial que atuava em casos que envolvessem policiais militares, notadamente naqueles registrados como “resistência seguida de morte”. Nessa condição, no dia 2 de outubro de 1992, foi chamado à Casa de Detenção de São Paulo. Havia a notícia de uma rebelião no Pavilhão 9 que terminou com a intervenção da Polícia Militar (PM). As primeiras informações davam conta de pelo menos oito mortes. Ao fim do trabalho, foram contabilizadas 111 vítimas fatais.
Negrini foi acionado pelo delegado do 9º Distrito Policial (Carandiru), responsável pela área da Casa de Detenção. O delegado solicitou que ele passasse primeiro na delegacia, antes de seguir para o estabelecimento prisional. “Peguei o meu fotógrafo, passamos no 9º DP. O delegado já foi avisando: ‘a PM fechou a Casa de Detenção inteira e não está deixando nem entrar. Eles não querem perícia de jeito nenhum lá dentro. Por via das dúvidas, vamos na minha viatura, deixa a sua aí para não chamar a atenção. Vocês ficam no banco de trás, qualquer coisa são investigadores’. Assim entramos na Detenção. Deram acesso apenas até o pavilhão da diretoria. Bem longe do Pavilhão 9”, disse o perito.
De acordo com Negrini, parecia que nem os diretores da Detenção sabiam o que estava acontecendo lá dentro. “Ou sabiam e não estavam querendo dizer ou não sabiam… Perguntei se tinha policial morto: ‘não, não tem notícia disso’. As informações eram dadas de maneira fracionada. ‘Eles estão fazendo uma limpeza geral no Pavilhão 9. Apreenderam muita arma, munição dentro da Casa de Detenção’. Achei aquilo estranho”, relembra.
Duas horas depois de sua chegada ao local, já por volta das 22h30, Negrini conta qual foi a sua primeira impressão, na chegada ao Pavilhão 9. “Logo na entrada eu vi que teve incêndio em baixo, um monte de sujeira, um monte de bagunça. De fora mesmo, sem entrar, já vi que tinha marca de tiro na parede. Fiz umas fotos na entrada, conversei com o coronel, que estava como guardião do local. Ele foi o responsável pela limpeza do local antes da perícia… Sugeri entrar para fazer umas fotos. Ouvi o seguinte: ‘Não adianta. Não tem luz, está um horror, sujeira para todo o lado. Fizeram uma bagunça, jogaram urina. Muitos têm HIV. O senhor não pode entrar”.
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Negrini afirmou a ele que precisava justificar a sua ida até o local. Depois de um pouco de conversa, conseguiu acesso ao térreo. A cena ainda é clara em sua memória: “quando eu cheguei ao primeiro pavimento, estava lotado de cadáveres. ‘Como é que os caras fizeram isso?’, me perguntei. Aí eu percebi que eles foram matando e empilhando ali. Até o PM que estava iluminando o local – que estava com a energia cortada – ficou assombrado: ‘nossa, o que aconteceu aqui. Parece que teve uma guerra’. E teve mesmo. Só que só perdeu um time. Eu contei 90 cadáveres”, afirmou o perito.
O perito diz que já no térreo viu cenas aterrorizantes. A cozinha estava cheia de marcas de bala e muito sangue no chão, diz. “Porque foram matar gente na cozinha? Na barbearia, a mesma coisa. Fiz todo aquele quadrado no térreo, começando pelo incêndio. Mostrando como começou o incêndio, televisões quebradas,… bate com o que o coronel falou depois. Os holofotes mostraram poças de uma substância escura que vinha da escada. ‘O que será isso aí?’. Parecia graxa. Eu já era perito há19 anos… ‘Não é graxa isso aqui não’. Aí olhei de perto. ‘Dá uma iluminada aqui’. Falei: ‘caramba, isso aqui é sangue’. Descia que nem cascata. Nem em filme de terror eu vi isso. Estava super gosmento. Eu fiquei com sangue, sujeira até o meio da canela”.
Ele prossegue o relato: “podiam ter dominado a situação, no meu entender, sem dar um tiro. Os presos correram – não tinham arma – para suas celas. Só que por alguma razão, descontrole de comando, a Rota entrou também. Não era para ter entrado. A Rota, na época, era um órgão de repressão… Na época tinha 220 mortes de resistência seguida de morte por mês. Média de 220 casos por mês. Praticamente só a Rota. Depois do Massacre, caiu para 30, só para ter uma ideia. Até hoje está 40, 50”, afirma.
Ele conta que no Pavilhão em que a Rota agiu, ocorreu um massacre, de fato. “Quando a Rota entrou, foi matando todo mundo que estava dentro da cela. Inclusive alguns que entraram na cela errada morreram. Tinha cela que não tinha nenhum tiro, cheia de preso, e outra toda metralhada. Em cima, em baixo, beliche, dois, três quatro. Um monte de tiro pra todo lado e um monte de mortos”.
Durante a perícia, foi apresentada a ele pela PM uma cesta de armas, que a polícia diz ter apreendido na Detenção, e outra cesta cheia de revólveres. “Eram armas velhas, enferrujadas, sem munição, todas com o número raspado. Eu trabalhava nessa área. Sabia que de vez em quando a PM plantava armas. Andavam com um revólver frio. Quando matava o cara, pegava e jogava lá para dizer que foi reação”, disse.
Negrini conta que apesar das adversidades, nunca sofreu pressão direta por conta do seu trabalho. “Diretamente não. Mas tinha recado de tudo o que era jeito. Eu fechava ouvidos. Ouvi muita coisa de outros peritos e delegados. De que eram todos presos, todos bandidos. A PM tentou um contato para fazer um acordo. Não diretamente a mim. Para saber como ia sair o laudo, para discutir antes. A ideia era provar que os presos atiraram primeiro nos policiais. E essa prova não tinha e eu não ia fabricar. Não tinha nenhum tiro contra eles. Um PM tomou um tiro de raspão no braço. Perguntado onde ele estava, deu para perceber que ricocheteou na parede e pegou nele. Depois de um tempo até os policiais foram se abrindo”, afirmou.
Com tudo isso, Negrini diz ter chegado à seguinte conclusão: “30 dias depois entreguei o laudo. O fato principal é que não teve reação contra os policiais. Não houve reação. Foi uma operação policial de extrema violência, sem reação dos detentos. O local dava impressão nítida de que tinha sido violado para evitar alguma identificação de atirador pela perícia. Tudo o que sobrou, projéteis, cápsulas, a PM levou embora. O que apareceu para fazer exame balístico foram as balas que estavam dentro dos corpos”.
Ex-PMs são julgados 20 anos depois de massacre
Passados 20 anos do episódio que terminou com 111 presos mortos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, em outubro de 1992, 28 ex-policiais militares serão julgados pelo caso que ficou conhecido como Massacre do Carandiru. Segundo a defesa, dois desses réus já morreram.
Pelo menos 79 PMs acusados de envolvimento nas mortes esperam julgamento. O único que recebeu a sentença foi o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, que coordenava a operação no dia do massacre, mas teve sua pena de 632 anos de prisão anulada em 2006, sete meses antes de ser assassinado.
Em 2 de outubro de 1992, uma briga entre presos da Casa de Detenção de São Paulo – o Carandiru – deu início a um tumulto no Pavilhão 9, que culminou com a invasão da Polícia Militar e a morte de 111 detentos.
Entre as versões para o início da briga está a disputa por um varal ou pelo controle de drogas no presídio por dois grupos rivais. Ex-funcionários da Casa de Detenção afirmam que a situação ficou incontrolável e por isso a presença da PM se tornou imprescindível.
A defesa afirma que os policiais militares foram hostilizados e que os presos estavam armados. Já os detentos garantem que atiraram todas as armas brancas pela janela das celas assim que perceberam a invasão. Do total de mortos, 102 presos foram baleados e outros nove morreram em decorrência de ferimentos provocados por armas brancas. De acordo com o relatório da Polícia Militar, 22 policiais ficaram feridos. Nenhum deles a bala.
Marina Novaes, Portal Terra
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