“Não quero ser odiada sem nenhuma razão”, diz chechena sobre atentado em Boston. Moradora de Moscou relata cotidiano de preconceito por causa de sua origem. Ela teme onda xenófoba após ataque nos EUA
Zarema (nome fictício) nasceu em Moscou, em uma família de classe média, trabalha em uma empresa estatal e gosta de viajar. De personalidade forte, é ela quem comanda a conversa. “Não coloque o meu nome, sobrenome, foto, nada”, relembra. Zarema nasceu na capital russa, mas não se sente completamente parte dela.
Apesar de falar russo como uma moscovita, a jovem, de 28 anos, se sente acima de tudo chechena. Seus pais nasceram na Chechênia, um dos 83 entes da Federação Russa, e se mudaram para Moscou no início da década de 80, antes que ela nascesse e das guerras das décadas de 90 e 2000. O pai conseguiu um emprego como policial e veio com a esposa, que logo encontrou emprego como médica.
A menina nasceu em 1984 e aprendeu desde cedo o sentido das palavras “minoria” e “preconceito”. “Comecei a frequentar a escola no início da década de 90. As crianças sabiam da minha origem porque nunca a escondemos e também porque meu sobrenome já indicava que eu não era (etnicamente) russa”, relata Zarema. “Eu sempre fui a melhor aluna da classe, mas mesmo assim ouvia acusações de que ‘nós chechenos estávamos matando os russos’. Eu era a única chechena no grupo e os professores também faziam piadas. Lembro-me de ouvir isso durante toda a minha infância e adolescência”.
A Primeira Guerra da Chechênia, entre 1994 e 1996, expulsou centenas de milhares de chechenos para outras regiões da Rússia e outros países. Estima-se que, apenas em Moscou, o número de chechenos atualmente seja de 80 mil. Na União Europeia, podem ser 130 mil os refugiados chechenos com ou sem documentos de residência.
“Com a guerra, muitas crianças começaram a chegar à minha escola. Mas continuamos sendo culpados pelas mortes de civis. Essas pessoas (professores, alunos) não conheciam ninguém na Chechênia e eu sim. Parentes meus foram mortos pelas forças russas. Mas eles continuavam me acusando”, conta Zarema . “Eu era só uma menina de origem chechena, mas como as pessoas ao redor eram etnicamente russas, todo mundo estava ‘contra’ mim. Acabei ficando mais chechena”.
A jovem agora prefere não contar sua origem para evitar problemas. Segundo Zarema, muitos chechenos se reúnem apenas com pessoas da mesma nacionalidade como uma forma de proteção e aceitação. “As pessoas me julgam. Tenho medo de não conseguir me controlar e dar uma resposta com um tom mais agressivo, caso ouça algum comentário preconceituoso. Por isso prefiro não falar que sou chechena. Tenho medo de ficar nervosa e passar uma imagem errada dos chechenos. Talvez eu seja a única chechena que essa pessoa conheça ou vá conhecer”.
Em entrevistas de trabalho, o nome e o sobrenome de Zarema também costumam chamar a atenção. “Como já não temos a nossa etnia no documento de identidade, eles tentam descobrir fazendo perguntas incômodas”. Em 1932, o então líder da União Soviética, Josef Stalin, introduziu a etnia no passaporte interno dos soviéticos. A especificação da origem só foi eliminada do documento em 1997. Nas últimas eleições legislativas da Rússia, uma das propostas do Partido Comunista Russo era voltar a incluir a etnia nas identidades russas.
No entanto, mesmo sem a palavra “checheno” na identidade, cidadãos russos provenientes desta região do país costumam ser parados na rua por policiais para a averiguação de documentos.
“O registro de residência é exigido para qualquer russo que more em Moscou. Mas um russo eslavo vai ser somente mais um russo. A polícia vai parar os que claramente aparentam ser não-eslavos, como os chechenos. Para as mulheres é menos complicados, mas mesmo assim já fui parada algumas vezes”.
Zarema explica ainda que quando há ataques onde se suspeita que haja envolvimento de grupos chechenos, a polícia de Moscou vistoria as casas de chechenos.
“Como estamos registrados na prefeitura, a polícia vem, revista, faz perguntas sobre nossa vida, nosso trabalho, nossos estudos. Somos suspeitos pelo simples fato de ser da Chechênia”.
Atentado em Boston
A jovem diz que se surpreendeu pelo fato de a polícia não ter feito este controle após o ataque em Boston. “Acho que eles sabem que não tem nada a ver com o separatismo checheno. Mas eles (Polícia e FSB – Serviço Federal de Segurança, agência russa que substituiu a KGB) já vieram à minha casa tantas vezes…”.
Com a Chechênia e a região norte do Cáucaso nas manchetes dos jornais de todo mundo, a jovem critica a mídia e diz que as pessoas estão falando sobre os chechenos de maneira superficial, sem conhecimento. Segundo ela, as televisões e os jornais russos insistem na associação dos adjetivos “terrorista”, “checheno” e “perigoso” e ela prevê que agora passe a ter problemas não somente na Rússia, como também em outros países.
O principal medo de Zarema é uma nova onda de discriminação com os chechenos, que já foi registrada nas redes sociais, no calor dos acontecimentos. Grupos e fóruns no VKontakte (rede social mais popular da Rússia) testemunharam nesta semana um crescente discurso de ódio contra a população da Chechênia.
“Não vou deixar que ninguém me insulte ou me discrimine por causa da minha origem. Não vou me submeter para conseguir um trabalho, por exemplo. Este é um valor muito checheno, que eu aprendi com a minha mãe. Um checheno não vai permitir ser humilhado”. Zarema acredita que se falar sobre a sua origem ajudasse a tirar o estigma e o preconceito que existem sobre sua nacionalidade, ela estaria pronta para compartilhar coisas sobre a Chechênia com outras pessoas. “Acho que seria até mesmo algo educativo”.
Em pesquisa divulgada na semana passada pelo Centro Levada, que monitora o comportamento dos russos, 33% disse que o ataque em Boston está relacionado ao “extremismo islâmico”, apesar de ainda não haver nenhuma prova concreta. E 72% dos entrevistados acreditam que atos terroristas no norte do Cáucaso (região onde se localiza a Chechênia) são prováveis em um futuro próximo.
“As pessoas buscam um alvo fácil. Não foi minha escolha ser chechena. Tenho orgulho da minha origem, mas não quero passar minha vida tendo que me defender, tentando explicar e convencer as pessoas da minha inocência sempre. É muito esforço emocional e de graça”. E conclui: “Não quero ser odiada sem nenhuma razão”.
Sandro Fernandes, Opera Mundi