“Conjunto de membros” de Albinos chega a valer 75 mil dólares. As partes mais valorizadas são dedos, língua, braços, pernas e genitais. Famílias desesperadas abandonam ou escondem crianças
Sindiswa Ntshinga é empregada doméstica e mãe solteira. Moradora da favela de Gugulethu, na África do Sul, a africana de 36 anos cria quatro meninos, dois de pele escura como ela e dois de feições claras e com cabelos loiros. O nascimento do primeiro filho albino aconteceu no ano de 2004.
“Eu não sabia o que albinismo significava, mas lembro que fiquei assustada”, relembra. Com a ajuda de médicos locais, Sindiswa aprendeu tudo sobre a condição de natureza genética em que há um defeito na produção de melanina pelo organismo. Mas apesar de ter saciado o anseio pelo desconhecido e ter aprendido a atender as necessidades da criança, o medo ainda a persegue. “Eu posso lidar com os problemas de pele, de visão e até de preconceito, apesar de machucar. Mas me apavoro em pensar que meus filhos são alvos de caçadores”, lamenta.
Em muitos países africanos, pessoas com albinismo são vistas como seres mágicos que possuem poderes de cura, tornando-se, por isso, vítimas de “muti” (mutilamentos realizados para poções usadas em rituais de bruxaria). “Partes do corpo de albinos são comercializadas em um `mercado’ ilegal ao redor do continente para fins religiosos”, explica Nomasonto Mazibuko, presidente da ASSA (Associação de Albinos da África do Sul, na sigla em inglês).
Devido a esse fato, milhares de pessoas passaram a se esconder com medo de perder suas vidas para “caçadores”, que chegam a ganhar 75 mil dólares vendendo um “conjunto de membros”. As partes mais valorizadas (dedos, língua, braços, pernas e genitais) podem ser comercializadas por 3 mil dólares. Entre 2006 e 2012, 71 albinos foram sequestrados, mutilados ou assassinados ao redor da África-subsariana.
O último crime registrado no país sul-africano ocorreu em 2011, quando Sibisuso Nhatave desapareceu enquanto caminhava para a escola na província de KwaZulu-Natal. O menino albino de 14 anos nunca mais foi encontrado. Concluídas no ano passado, as investigações apontaram para sacrifício tribal.
A presidente da ASSA ressalta, porém, que a África do Sul não é a nação que mais sofre com o fenômeno de caça aos albinos. “A Tanzânia é a região com maiores índices de assassinatos para fins religiosos. Mas o crime acontece no continente inteiro”, explica, destacando que ainda não existe nenhuma legislação específica para combater esse tipo de crime. “Nós, como país e continente, precisamos de leis somente para punir essas atrocidades ”, completa.
Preconceito e abandono
Moradora de Gugulethu, a 15 km da capital Cidade do Cabo, Khutaza Ntshota Nono perdeu as contas de quantas vezes foi ofendida ou reverenciada na rua. “Muitos me xingam ou não param de me olhar, como se eu fosse uma aberração. Também há aqueles que encostam em mim e começam a rezar, acreditando que vou trazer sorte para suas vidas”, conta a estudante de 17 anos. O preconceito contra albinismo ainda é fortemente enraizado na sociedade sul-africana, onde muitos ainda enxergam a condição como algo “de outro mundo”.
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Para Nomasonto, essa realidade só pode ser mudada com a ajuda do governo. “Precisamos de campanhas de conscientização que informem e eduquem as pessoas. Além disso, em nenhuma parte da nossa Constituição se fala sobre albinismo. A sociedade precisa entender que isso é uma questão genética e não algo divino ou demoníaco”, declara. Segundo ela, as regiões rurais são as mais afetadas pelo fenômeno.
O abandono de crianças com albinismo é outro grande problema do país, que registra mais de dez casos todos os anos. De acordo com o professor Trevor Jenkins, do Instituto Sul-Africano de Pesquisa Médica, um em 35 negros do país são portadores do gene que transmite de forma hereditária a condição. “Quando ambos os pais são portadores, a criança nasce com albinismo. Muitas famílias escondem seus filhos por vergonha”, explica.
Julia Skasi, de 43 anos, presenciou quando a vizinha jogou a filha recém-nascida na lata de um lixo nos arredores de Khayelitsha, segunda maior favela da África do Sul. “Saí correndo para ajudar e, quando cheguei lá, vi que o bebê era branco. Tentei conversar com a mãe, mas ela afirmou que não queria uma filha ‘com defeito’“, relembra.
Educação
Sensibilizada com a situação da criança, a dona de casa adotou a menina que hoje se encontra saudável e com quatro anos de idade. “Ela é ótima na escola, apesar de sofrer preconceito de muitos coleguinhas. Para ajudar eu conversei com os professores e expliquei sobre a saúde da minha filha. Aos poucos o assunto passou a ser introduzido na sala de aula”, conta.
Mesmo com todas as dificuldades de adaptação em ambiente de ensino, a africana de cultura xhosa comemora o fato de a filha frequentar uma instituição regular da região. “Foi difícil encontrar uma escola que a aceitasse, as pessoas não sabem como lidar com o albinismo”, diz. A presidente da ASSA confirma o fato explicando que grande parte dos albinos acaba estudando em escolas especiais para cegos. “Muitos albinos têm problema de visão, mas isso não significa que eles não enxergam”, diz.
É o caso de Khutaza, que está prestes a se formar no terceiro ano do Ensino Médio em uma instituição para cegos em Gugulethu. A adolescente de 17 anos explica que, apesar de ter dificuldades para enxergar à distância, ela não é portadora de cegueira. “Foi o único colégio que soube me ajudar e entender as minhas limitações”, fala.
Moses Simelane, do Departamento de Educação Básica da África do Sul, garante que o governo já esta tentando reverter essa realidade. “Começamos um treinamento nacional para profissionais da educação ao redor do país, que aborda a diversidade dentro da sala de aula, entre elas o albinismo”, afirma, explicando que o projeto teve início em dezembro de 2012. “Até o final do ano nós pretendemos atingir todas as províncias”, diz.
Nomasonto Mazibuko comemora a iniciativa e afirma que esta é uma das principais conquistas da ASSA este ano. “Estamos acompanhando todos os workshops com professores, oferecendo palestras e treinamento de graça”, diz. A presidente ainda destaca a luta da instituição para que o albinismo seja considerado um tipo de deficiência física junto à Constituição Nacional. “Desta forma uma pessoa albina passará a ganhar privilégios governamentais, principalmente na área da saúde, como protetor solar e consultas médicas providenciadas pelo estado”, conclui.
Renata Galvão, para por dentro dos brics (www.osbrics.com) e Opera Mundi