A cura gay é um esconderijo para os que sofrem com o armário — em vez de romperem a prisão do medo, se lançarão em uma gaiola na qual quem se apresenta como cuidador é um algoz do sexo. Não há cura para a homossexualidade, simplesmente porque não há doença nem perturbação ou perversão a serem tratadas
Por Débora Diniz*
Uma leitura rápida não é capaz de decifrar o objeto da controvérsia do Projeto de Decreto Legislativo nº 234/2011, recentemente ressuscitado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Há pelo menos duas formas de entendê-lo. A primeira segue a literalidade dos três parágrafos do texto: ao sustar artigos da Resolução nº 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia, o projeto autoriza tratamentos psicológicos para gays. Seria uma vigilância do Legislativo a atos supostamente abusivos dos conselhos profissionais. Mas é a segunda leitura que descortina o segredo da proposta. Não se trata de um texto sobre liberdade profissional de psicólogos, mas de uma artimanha moral. Em nome do livre exercício profissional, institui-se a cura gay.
Cura gay foi o nome dado às iniciativas para patologizar a homossexualidade, isto é, para descrevê-la como doença. Falsamente se pressupõe que a heterossexualidade seria a única sexualidade saudável, para daí se classificar as outras formas de vivência como anormais. O destino dos desviantes seria a clínica gay. Uns poucos psicólogos solitários sustentam haver tratamento psíquico para a homossexualidade e reclamam ser cerceados em sua liberdade profissional. Ora, não há liberdade profissional para práticas discriminatórias ou charlatanices — o papel dos conselhos profissionais é exatamente este: discernir a boa da má prática profissional. O Conselho Federal de Psicologia não tem dúvidas e decretou que psicólogos não podem se lançar como terapeutas da cura gay. Isso foi há mais de uma década e já 20 anos depois de a Organização Mundial da Saúde ter banido a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças.
O tema da cura gay voltou à pauta nacional no mesmo dia em que a democracia se movimentava nas ruas. Eram milhões de jovens reclamando igualdade — fosse no transporte, na educação ou, simplesmente, na vida. Alheios ao clamor nacional, alguns deputados se reuniram e deram vida à homofobia travestida de democracia. Erra quem imagina que essa é uma disputa sobre liberdade profissional. O projeto não visa garantir o livre exercício profissional de psicólogos convictos de que homossexualidade é doença. Essa é só a peça final de um jogo de obscuridades. O que importa é classificar práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo como patológicas. Ser gay passaria a ser um tipo psicológico desviante. A clínica do desvio sexual se instauraria como uma nova especialidade no Brasil.
O psicólogo da cura gay acredita que há sexualidades abjetas. É um sujeito paralisado pela moral que falsamente supõe ser a heterossexualidade o destino dos corpos. Imagino-o como alguém assustado com a nova ordem social — os gays se casam, têm filhos, param as ruas para reclamar seus direitos. Esse vasto contingente se recusará a procurar a clínica de cura gay. Será difícil um psicólogo conseguir vencer a recusa dos gays em se reconhecerem como patológicos e ainda sobreviver à permanente crítica de colegas de profissão. Mas nem todos os gays saíram do armário, anunciaram-se em suas escolhas ou mesmo são livres para fazê-las. É para esses sujeitos que o projeto de cura gay é uma temeridade.
A cura gay instaura a dúvida injusta de a homossexualidade ser uma doença e, assim sendo, se os indivíduos deveriam se medicar. Ela perturba as famílias ainda inquietas com a sexualidade de filhos adolescentes ao prometer um atalho para a mudança de mentalidades. A cura gay é um esconderijo para os que sofrem com o armário — em vez de romperem a prisão do medo, se lançarão em uma gaiola na qual quem se apresenta como cuidador é um algoz do sexo. Não há cura para a homossexualidade, simplesmente porque não há doença nem perturbação ou perversão a serem tratadas. No entanto, descrevê-la como desvio patológico é perturbar uma ordem inquieta sobre a sexualidade.
Acredito que a resistência à cura gay não virá apenas dos corpos que se declaram como homossexuais, mas de toda a nova rede de relações que reconhece a homossexualidade como vivência legítima dos corpos e dos sexos. Não me espanta saber que havia poucos manifestantes gays na plenária que votou o projeto enquanto o país estava nas ruas. Só não será fácil para os deputados levarem o projeto da cura gay adiante. As ruas ainda se manterão cheias nos próximos dias, mas nossos olhos se abriram para a democracia que se exercita no Congresso Nacional. O grito das ruas anuncia que estamos fartos de injustiças. Se 20 centavos mobilizaram multidões, o que dizer de um projeto que ameaça a igualdade de milhões que movimentam as paradas gays pelo país?
*DEBORA DINIZ – Antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero). Para o jornal Correio Braziliense
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