Autores avaliam que manifestações são movidas pela “esperança de tornar real e disponível o bem comum”, mas têm dificuldades de transformar essa poderosa energia em alternativas concretas rumo a um novo país
Ricardo de João Braga e André Sathler Guimarães *
O movimento contestatório que se espalhou por diversas cidades brasileiras não definiu linhas partidárias ou ideológicas para adversários e apoiadores. Também não são conhecidos líderes, caso existam. Quanto aos motivos, distribuem-se dentro dos gritos, das palavras de ordem e das bandeiras; não há hegemonia de nenhum deles – é o Brasil e em especial a vida pública. É uma marcha geral, inespecífica. Nesse sentido, o questionamento sobre sua natureza e seu legado relaciona-se ao simbólico e à energia que o compõe e o move.
A indignação é a grande força do movimento, e em seu contato com o mundo político traz como primeiro elemento uma cobrança de altruísmo. Ao se gritar por mudança, por moralidade, o alvo é a atitude alheia, uma cobrança de mudança de dentro para fora. É o coletivo, o bem comum que grita contra os diversos desviantes, refugiados no castelo do egoísmo. Cada um entende que o bem comum, definido individualmente e pretensamente compartilhado por todos, está sendo atacado por adversários estranhos, externos.
Apesar da impossibilidade de uma definição, o bem comum permanece, e deve permanecer, como referência atitudinal e comportamental para a sociedade, que, afinal, só se constitui no momento em que identifica que há mais benefícios na vivência do comum do que no isolamento. As dificuldades de conceituação nascem justamente das falhas inerentes a qualquer aritmética baseada em subjetividades. Somar interesses, agregar preferências, medir e combinar utilidades, são terminologias e metodologias aproximativas, esquemáticas, que buscam incorporar esse elemento evanescente ao mundo da racionalidade objetiva. Contudo, é nessas fórmulas concretas que o bem comum se materializa da forma possível. Quem o move são as paixões, quem o formata são as regras.
Na permanente luta de interesse contra interesse, o indivíduo renuncia ao Estado beligerante na medida em que percebe que foi, ao menos, parcialmente vitorioso. Seja no contratualismo otimista de Locke, ou no miserável de Hobbes, encontra-se, na semente da sociedade, uma solução sistêmica ao conflito de interesses individuais. Quando as pessoas deixam de enxergar pontes de identidade entre o “bem comum” disponível à sociedade e sua própria conceituação de bem comum, há um esgarçamento do tecido social. O concreto está posto, e o sonho individual contra ele se lança e se destrói. Vivemos com esse barulho, ora nos beneficiando, ora nos sentindo injustiçados, resignados pela contemplação desse pragmático mundo da vida. Se caminhamos e resistimos, contudo, é porque existe um poderoso remédio, de efeitos tanto analgésicos como estimulantes: a esperança de tornar real e disponível o bem comum.
Mas a esperança mingua na mesma proporção em que ocorre o esgarçamento antes citado. A crise é de esperança. As pessoas, sobretudo jovens, vão às ruas porque perderam as esperanças. Sintomático que muitos dos slogans do movimento, como “desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil”, sejam prenhes de esperança. Pois é exatamente o que os jovens estão a buscar nas ruas: esperança. Também sintomática a exacerbação da esperança diante de um quadro desolador, vivenciado dia a dia, todos os dias, ao longo dos muitos anos do “Brasil injusto e desigual” – que os últimos 20 anos não apagaram. É na conexão entre o indivíduo e a coletividade que está a energia do movimento, é lá que a esperança vira ação, que gera o questionamento e a reivindicação.
Como espaço tanto prático quanto simbólico de expressão institucionalizada do que seja esse bem comum brasileiro, o Estado atrai o vento e a fúria dos manifestantes e os palácios são os alvos mais fáceis. Os movimentos ou são críticas em gênero à forma de gerir a coletividade brasileira, ou o rol de problemas é tão extenso que nenhum deles ainda conseguiu dominar o proscênio. Estão em cheque a forma de governar, os critérios de aplicação da Justiça, os sistemas eleitoral e partidário. O bem-estar possível, alcançado até agora pelos Estados ao redor do mundo, revelou-se muito distante do bem comum sonhado pela comunidade. Incapaz de adentrar à Terra Prometida, o Estado mosaico vaga no deserto. Mas, sem Canaã, o sacrifício pedido torna-se insuportável – há um esvaziamento da legitimidade da Política como campo de solução dos conflitos de interesse.
Por isso, talvez, seja tão difícil, quiçá impossível, discernir uma tendência bem definida nos protestos. Prevalece uma sensação generalizada de frustração, canalizada mais fortemente contra instituições que simbolizam de alguma forma a Política operacionalizada – assembleias, prefeituras, câmaras municipais. O “não me representa”, aplicado recentemente a um parlamentar específico, transborda e vira um “não me representa” carimbado a tudo o que cheire à política operacionalizada e à Política como conceito. O problema reside justamente nessa incapacidade de articulação entre política operacionalizada e Política conceito. Existe Política no Brasil, como existe em qualquer sociedade humana e sempre existirá, como solução pacífica de situações conflitivas. Qualquer sociedade é Política, ou, melhor, a sociedade só existe por causa da Política. Quando essa Política não é mais vista nos seus espaços tradicionais, surge a frustração e, com ela, a tentação de apelos alternativos propagandeados por líderes carismáticos e oportunistas o suficiente. O outro risco é que as pessoas, desesperançadas, pulem de causa em causa, de passeata em passeata, mudando com a mesma velocidade com que vão se desiludindo. A rapa do tacho desse processo, como dizem os mineiros, é o cinismo generalizado.
Mas onde está o paradoxo referido no início? A esperança, que cobra a mudança do mundo, está rompendo as regras para se mostrar ao Brasil, mas o mundo moderno é um território de instituições. Profissões, atividades políticas, o próprio convívio no espaço público, todos estão submetidas a regras, e essas incentivam ou desestimulam determinados comportamentos. O altruísmo é um esteio da sociedade e uma esperança para o movimento, mas as regras para o mundo público e seus incentivos derivados são a engenharia das atividades institucionalizadas. É na sua crítica e principalmente nas propostas de modificação das regras e instituições do mundo político que o movimento pode construir algo. O paradoxo está na energia enorme para romper regras e na desarticulação para criar novas, pois o rompimento em si mesmo não gera nada novo nem constrói alternativas. Que alternativas surgirão, se surgirão, veremos.
* Ricardo de João Braga e André Sathler Guimarães são professores do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. (Congresso em Foco)