'Estamos diante de uma esfinge', diz historiador sobre manifestações. Intelectuais tentam compreender movimento que despreza a mediação política e tem rumo imprevisível
O movimento que toma as ruas de todo o país ainda não pode ser definido por parâmetros científicos, sociológicos e políticos definitivos. “Estamos diante de uma esfinge. O movimento pode tomar qualquer rumo”, diz, por exemplo, Lincoln Secco, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “É um movimento de grande apelo de juventude, no qual há uma linha divisória muito forte. É como se estivessem dizendo: ‘existe um mundo velho, no qual não nos encaixamos, não nos sentimos respirando dentro dele’. Isso até explica a vagueza do movimento e o fato de que se pode ir desde reivindicações típicas de movimentos sociais, como a inicial, a revogação de aumento do ônibus, até questões mais entrópicas, como uma mudança no perfil da cidade”, acrescenta o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP.
Para ele, uma das principais e mais enaltecidas características das manifestações, que é não ter lideranças definidas, “é mais uma qualidade do que um defeito”. “O fato de não ter identidade definida é próprio de um movimento, por um lado, de juventude, e por outro de um período em que a política ou economia já não satisfazem, quando não se consegue definir as coisas em termos do que tradicionalmente é direita e esquerda, um período entre o velho e o novo”.
Lincoln Secco considera o movimento “surpreendente”. “Porque, do ponto de vista da história do Brasil, desde 1992, com a campanha do impeachment, não havia tantas pessoas nas ruas de maneira simultânea, em várias cidades.” Porém, o historiador vê uma diferença “crucial” entre o atual movimento e as greves no ABC nas décadas de 1970, 1980, as Diretas Já em 1984 e as manifestações pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992: “aqueles eram movimentos que acabavam sendo dirigidos por alguma organização pré-estabelecida, por um partido, sindicato ou, no caso de 1992, pela UNE, que acabou filtrando o processo. Hoje não temos um partido, um sindicato, uma união de estudantes que fale por esse movimento”, aponta Secco.
Nesse ponto, o sociólogo e blogueiro Emir Sader discorda. “Há liderança, sim, pois apareceu gente falando em nome do movimento. Isso de não ter liderança é bobagem”, diz. Para o historiador da USP, o Movimento Passe Livre é “muito interessante” justamente por ser “horizontal, mas ao mesmo tempo exigir que as pessoas que definem a sua política sejam participantes orgânicos. E, no processo, até mesmo o MPL foi ultrapassado pelas ruas”. “Ser horizontal não significa que não haja organização e liderança”, diz Secco. “Obviamente, um movimento horizontal vai nomear pessoas para eventualmente negociar em seu nome. Às vezes os intelectuais têm dificuldade de entender que há outras formas de organização além das partidárias e hierárquicas.”
Emir Sader, entretanto, diz que fora a questão circunstancial sobre o aumento das passagens de ônibus ou mesmo a repressão violenta das polícias de São Paulo e Rio de Janeiro de uma semana para cá, o movimento atingiu a inesperada magnitude observada na noite de ontem (17) por um problema “mais de fundo”, nas palavras do sociólogo. “Não existe política para a juventude. O governo federal não discute a questão do aborto, está contra a descriminalização das drogas. Teve uma gestão do Ministério da Cultura (da Ana de Hollanda) trágico, que agora melhorou um pouco, mas pouco.” Atualmente, a ministra da Cultura é a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy.
“Temas que têm a ver com os jovens não fazem parte do ideário geral da política. Mesmo Lula, que foi o maior líder político que a gente já teve, não tem interlocução com a juventude. Os jovens estão afirmando sua presença, o que é bom. A pior coisa que pode acontecer é uma juventude passiva”, afirma Sader.
Na mesma linha, Renato Janine aponta “agendas que os políticos não costumam considerar”. Ele cita como exemplo a questão da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida desde março pelo deputado Pastor Marco Feliciano (PSC). “A base governista e sobretudo o PMDB deram a comissão para aquele deputado, o Feliciano, e por quê? Porque os direitos humanos são irrelevantes. Coisas irrelevantes para os partidos podem ser muito importantes na vida as pessoas. Seria bom os políticos perceberem isso.”
Primavera árabe
Tanto Janine Ribeiro como Lincoln Secco veem similaridades entre o que está acontecendo no Brasil e o processo desencadeado no Oriente Médio no segundo semestre de 2010 e que redundou, como fato mais significativo, no fim de quase 30 anos de governo Hosni Mubarak no Egito, em fevereiro de 2011.
Para o filósofo da USP, há semelhanças, “mas não tem nada a ver com globalização”. Segundo ele, “o maio de 68 em Paris não tinha essa globalização e os movimentos são muito parecidos. Claro, há as redes sociais, mas um ponto que chama a atenção nesse sentido é de um movimento que vai muito além das suas causas, os 20 centavos dos ônibus, por exemplo. Todas essas explicações são muito pequenas perto do que surge”, analisa.
“Do ponto de vista mundial, o MPL se enquadra perfeitamente no processo que começou com a Primavera Árabe e que, como nos EUA e no sul da Europa, foi espontâneo”, avalia Secco. “Isso dá a força e a fraqueza do movimento. Força porque qualquer manifestação espontânea acaba sendo mais atrativa para as pessoas que rejeitam partidos e políticos em geral; mas num segundo momento, não consegue traduzir a força numa nova política. Na Primavera Árabe, o movimento foi forte, mas depois houve eleições e as forças que ganharam as eleições não representavam o movimento.”
A questão da rejeição do movimento e políticos e partidos “não é uma novidade”, para Lincoln Secco. “Se há algo positivo na rejeição aos partidos e políticos, o fato de a juventude buscar novas formas de se manifestar e se organizar, há o risco de um movimento desse tipo ser uma força que é só formalmente apolítica, mas que é na verdade um discurso conservador.”
Eduardo Maretti, RBA
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