Investigação sobre a morte de João Goulart acompanha o andamento do caso envolvendo o Nobel de Literatura, Pablo Neruda
Faltam informações consistentes, até o momento, para responder de forma categórica a pergunta que dá título a esta matéria. Há, isso sim, indícios sobre a suposta participação de um agente da CIA, acusado dos atentados mais impactantes executados pela Operação Condor, no envenenamento que teria matado o poeta Pablo Neruda doze dias depois do golpe de Estado de Augusto Pinochet, no Chile. “Estou tomando conhecimento por seu intermédio desta denúncia contra esse agente estadunidense que trabalhou na CIA (Michael Townley). Isso é importante para nós, pode ser útil para nossa investigação sobre a morte do presidente João Goulart, antes de fazer a exumação”, disse Nadine Borges, assessora da Comissão da Verdade, em conversa com Carta Maior.
“Townley esteve envolvido em casos muito conhecidos da Condor. Se essa denúncia se confirmar, não podemos tirar nenhuma conclusão apressada, mas seria outro sinal de que membros dessa operação realmente utilizaram veneno como arma, o que nos traria um novo elemento para esclarecer o que aconteceu com João Goulart”, acrescentou Nadine Borges, que assessora “ad honorem” a coordenadora da Comissão da Verdade, Rosa Cardoso, e é integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro.
É bem conhecido – inclusive há trabalhos historiográficos a respeito – o apoio do ditador Emilio Garrastazu Médici ao golpe de Estado de Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. O jornal Folha de S.Paulo revelou meses atrás que seu sucessor, Ernesto Geisel, entregou milhões de dólares à ditadura chilena, na forma de crédito, para a compra de armas.
No dia 23 de setembro de 1973, doze dias depois da derrubada do presidente Salvador Allende, morreu o poeta Pablo Neruda, devido a um câncer de próstata, segundo a versão oficial que começou a ser posta em dúvida oficialmente em abril, quando a justiça chilena ordenou a abertura do caixão para que seus restos fossem estudados por vários peritos, inclusive da Cruz Vermelha Internacional, ante a suspeita de que foi intoxicado.
As suspeitas de envenenamento ganharam mais força semana passada quando o ex-chofer de Neruda, Manuel Anaya, declarou à agência italiana ANSA, que o possível responsável pela intoxicação foi o agente Michael Townley, que serviu a CIA estadunidense e a DINA, o organismo de inteligência política da ditadura chilena, criado por Manuel Contreras que adotou como um de seus modelos o SNI brasileiro, em cuja escola de repressores, a ESNI, estudaram possivelmente vários chilenos.
Se essa denúncia contra Townley se confirmar, ocorrerá um giro copernicano na rede terrorista multinacional Condor, ou pelo menos em um de seus capítulos ainda pouco explorados, o que trata da eliminação bioquímica de opositores no Chile e, supostamente, em vários países da região. Townley foi para a Condor o que Sergio Paranhos Fleury foi para a repressão no Brasil: um paradigma do serial killer a serviço da guerra sem fronteiras contra o comunismo real e o imaginado pelos generais sul-americanos. Foi ele que assassinou em 1975, em Washington, o ex-chanceler chileno Orlando Letelier, que participou, também em 1975, do atentado que feriu gravemente o vice-presidente chileno Bernardo Leighton, em Roma, e que, poucos meses antes, em 1974, executou em Buenos Aires o general Carlos Prats, exilado após a chegada de Pinochet ao poder.
A esse recorde terrorista se somaria o até agora não provado crime contra Pablo Neruda, de acordo com a declaração de seu assistente Araya, testemunha direta dos fatos. O motorista do automóvel do Prêmio Nobel de Literatura foi quem o levou até a Clínica Santa Maria, em Santiago do Chile, para tratar de uma estranha doença pouco antes de falecer no dia 23 de setembro de 1973.
Ainda que a verdade ou falsidade sobre a substância fatal que teria matado Neruda só será conhecida com a conclusão dos exames do cadáver, pode-se assinalar que a acusação contra Townley goza de verossimilhança dado os antecedentes criminais mencionados acima (atentados contra Letelier, Leighton e Prats). Além disso, ele trabalhou durante anos com o bioquímico Berríos, recrutado pela DINA chilena para desenvolver o mortífero gás Sarín e outros compostos destinados a eliminar inimigos da ditadura sem deixas rastros.
No prontuário “químico” de Townley está a execução com substâncias mortíferas de dois peruanos, que ele utilizou como cobaias para demonstrar a eficácia dos compostos elaborados em um laboratório que funcionava em sua casa no bairro Lo Curro, em Santiago do Chile, e estava subordinado à DINA.
A informação levantada por jornalistas chilenos indicava que o centro de experimentação com armas químicas da DINA começou a funcionar em 1975, ou seja, dois anos depois da morte de Pablo Neruda, um dado a levar em conta já que reduziria a probabilidade de que o escritor tenha sido assassinado por agentes do estado.
Mas, assim como a morte de Pablo Neruda, ocorreu em 1973, antes de ter sido posto em marcha o Projeto Andrea, e isso pode conspirar contra a ideia de assassinato, há outro suposto magnicidio que ocorreu anos mais tarde, em 1982, quando morreu o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, que segundo um juiz chileno foi vítima de um envenenamento durante uma internação precisamente na Clínica Santa Maria. O provável assassinato de Frei, em 1982, é um antecedente a ser levado em conta, quando se investiga o que ocorreu com João Goulart e seu estranho falecimento em 1976, que seus familiares atribuem a um envenenamento por meio da inclusão de fármacos contaminados junto aos remédios que tomava para uma enfermidade cardíaca.
Entre Frei e Goulart há semelhanças políticas: ambos eram, quando morreram, dirigentes políticos centristas com capacidade de reunir o respaldo de amplos setores, da esquerda à centro-direita, interessados em formar uma coalizão capaz de encurtar a transição democrática, que era o que menos queriam Pinochet e Geisel, o que permite suspeitar que ambos os ditadores tenham consentido ou instigado a eliminação desses opositores civis.
“Nestas investigações é preciso se mover com muito cuidado para evitar passos em falso”, recomenda Nadine Borges durante a entrevista com Carta Maior. Logo depois de fazer essa advertência, assinala que “diante das dúvidas e das provas que foram apagadas pelo tempo nós consideramos que o correto é não restar nenhuma dúvida e investigar. Por isso acreditamos que é preciso avançar o que for possível com as investigações sobre o que ocorreu com Neruda e Goulart, e buscar se há alguns paralelos, que me parecem podem existir, sem esquecer a informação que já se tem sobre Frei”.
No plano prático é útil incorporar a experiência acumulada no Chile, “por isso conversamos com peritos da Cruz Vermelha Internacional que estiveram como observadores nos trabalhos de abertura do caixão e primeiras manipulações com o corpo de Pablo Neruda; são informações importantes para nós que podem ser aplicadas no trabalho de exumação do presidente Goulart”.
Nadine Borges acompanhou a doutora Rosa Cardoso e outros membros da Comissão da Verdade ao Rio Grande do Sul, onde há uma semana receberam os citados especialistas da Cruz Vermelha junto com peritos da Argentina e do Uruguai, experimentados em trabalhos com corpos de vítimas das ditaduras dos seus países.
Para chegar à verdade sobre o passado, assinala Borges, deve-se trabalhar tanto com as ferramentas técnicas que aportam os especialistas forenses, como com a reconstrução histórica dos fatos. “Pode acontecer que o avançado estado de decomposição do corpo do presidente Goulart nos impeça de encontrar rastros que demonstrem que foi envenenado, mas mesmo assim vale a pena fazer a exumação porque o que estamos vendo com as suspeitas sobre Neruda é que o envenenamento pode ter sido uma arma empregada pela operação Condor em uma escala maior do que a que imaginávamos. Além disso, há vários elementos que nos indicam que o ex-presidente Eduardo frei também morreu por causa de um envenenamento”.
Dario Pignoti, CartaMaior. Tradução: Marco Aurélio Weissheimer