Déficit de médicos castiga moradores da periferia de São Paulo. Mesmo na maior metrópole do país, a carência de profissionais atrasa diagnósticos e tratamentos; atrair especialistas para longe do centro é o maior desafio
Sarah Fernandes e Julia Rabahie, Rede Brasil Atual
A distância, a dificuldade de locomoção e a carência de médicos especialistas formados criam um quadro problemático nas periferias de São Paulo: a população mais pobre não consegue passar por consultas médicas e realizar exames no período adequado, aguardando meses pelo atendimento. Nos rincões da maior metrópole do país falta a porta de entrada no sistema público de saúde: ginecologistas, psicólogos, psiquiatras, anestesistas e até clínicos gerais. Nos cálculos da Secretaria Municipal de Saúde, o déficit é de 2.680 médicos.
“Temos três vagas de clínico geral e estamos sem nenhum. Dois estão de licença, um foi embora e não há previsão de quando serão repostos. Eles são a base”, lamenta o funcionário de um complexo de saúde no extremo sul da capital paulista, que preferiu não se identificar. Usuários reclamam que a falta de clínico geral já dura um ano.
“Atendemos aqui 25 mil pessoas e estamos tentando redirecionar para outras unidades. Temos pediatra, psiquiatra, ginecologista e dentista. A demanda por psiquiatra é muito grande, por isso atendemos todos os pacientes, mesmo que não sejam da região.”
A psiquiatria é uma das especialidades prioritárias do Ministério da Saúde no programa Mais Médicos, lançado este mês pelo governo federal. O Centro de Atenção Psicossocial (Capes) Infantil Capela do Socorro, também na zona sul, esperou 11 meses pelo especialista, que chegou à unidade na última semana. “Tivemos dificuldade de conseguir médico, além da psiquiatria infantil ser uma área bastante específica”, afirma o supervisor do Capes, Paulo Cesar da Silva.
A unidade tem três psicólogos, três terapeutas ocupacionais, dois assistentes sociais, dois enfermeiros, cinco auxiliares, um farmacêutico, um assistente de farmácia, dois técnicos administrativos, dois agentes operacionais e um motorista. “Por conta da equipe e do trabalho multidisciplinar não suspendemos os atendimentos nem os acolhimentos. Manejamos a situação”, relata.
Nos últimos dez anos, o Brasil criou 147 mil vagas para médicos, 36,7% a mais do que os 93 mil formados no período, o que totaliza uma carência de 54 mil profissionais, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados em maio. Para tentar dar conta do problema, o governo federal lançou mão, neste mês, do Programa Mais Médicos, que prevê aumentar o ciclo de formação dos cursos de Medicina para garantir dois anos de atendimento obrigatório no Sistema Único de Saúde (SUS).
Os médicos que se integrarem ao programa, sempre nas unidades de atenção básica, receberão uma bolsa de R$ 10 mil, além de uma ajuda de custo que vai de três salários-extras para áreas remotas da Amazônia a um salário-extra no caso da periferia das grandes cidades. As vagas que não forem preenchidas por brasileiros serão destinadas a médicos estrangeiros.
Em São Paulo, a prefeitura criou um um grupo de trabalho com representantes das secretarias da Saúde, Planejamento e Finanças “para debater um novo plano de carreira com o objetivo de manter os profissionais na rede municipal e equalizar o desequilíbrio salarial hoje existente quando se comparam os salários pagos pela administração direta, pelas organizações sociais e pelo setor privado. Também será aberto concurso público este ano para preenchimento das vagas existentes”. Só no Hospital Municipal Professor Dr. Waldomiro de Paula, na zona leste, há um déficit de 120 profissionais.
As entidades que representam médicos, como a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), rechaçam a afirmação que faltam médicos para trabalhar nas periferias e nas regiões isoladas do país. De acordo com as organizações, a carência de profissionais nessas áreas deve-se à falta de infraestrutura e, por isso, o Programa Mais Médicos não revolverá efetivamente o problema.
ESPERA
O principal problema da falta de médicos, segundo os usuários, é a demora no atendimento. “Meu marido teve um ‘derrame’ em abril e ainda não fez os exames. Ele está com a voz enrolada e fico com medo porque dizem que o segundo é mais forte”, contou a diarista Andrea Rodrigues, que mora no bairro Cocaia, na zona sul, enquanto aguardava para marcar uma consulta na Unidade Básica de Saúde (UBS) Cocaia, pensando em prevenir que o marido sofra um novo acidente vascular cerebral.
No mesmo local, a dona de casa Cirlene dos Santos reclama que só conseguiu realizar cinco dos nove exames pré-natais da gestação do seu terceiro filho, hoje com três anos. “Depois do nascimento, ele deveria vir mensalmente para acompanhamento, mas se consegui trazê-lo seis meses foi muito, porque não tinha médico. Eles faltavam e éramos remarcados para o mês seguinte.”
A falta de médicos se repete também na zona leste da capital paulista. No Hospital Santa Marcelina, em Itaquera, faltam cirurgião geral, neurocirurgião, anestesista, ginecologista, neonatologista, intensivista, reumatologista e “primeiro lugar e há tempo: clínico”, como informou a assessoria de imprensa da entidade, por e-mail. “A maior causa é salarial. Existe uma grande competição com outras instituições, já que São Paulo não tem política única, e por causa da distância.”
Ainda em Itaquera, faltam médicos no Hospital e no centro de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) Planalto. Por isso, alguns atendimentos são oferecidos apenas algumas vezes por semana. Para compensar, alguns médicos são convidados a fazer horas extras em plantões, segundo a assessoria de imprensa da entidade.
“Não é todo dia que falta médico. Quando acontece, é feito o remanejamento. Temos algumas referências, como o Hospital Ermelino Matarazzo. Quando já se sabe que aqui em tal dia não tem uma especialidade, os pacientes são encaminhados para essa unidade”, informou a assessoria de imprensa. “A própria população é ciente disso. A gente tenta fazer o possível, mas tem coisa que a gente sabe que não vai ser 100%, devido à grande defasagem.”
A falta de médicos faz com que a vendedora Maria Fabiana dos Santos Costa espere, desde outubro do ano passado, por uma ressonância magnética nos joelhos, para acompanhar um problema nos ligamentos. “Estou doente há quase três anos e só piora. Fico em cima da cama sem poder andar”, conta. Antes disso, ela esperou mais dois anos para conseguir a consulta com o ortopedista.
“Eu morava em Itaquera e conversei com a assistente social do posto do Jardim Helian. Como eu não estava conseguindo nem mais tomar banho sozinha, ela me passou na frente, pela urgência. Mas o médico mal me atendeu e só falou que eu tinha de fazer a ressonância para depois voltar”, conta.
“Eles falam que é muita gente e que tem de aguardar. Há um mês eu liguei (no posto) e disseram que estavam chamando quem tinha passado com o médico em junho do ano passado. Se eu fui em outubro, vou passar quando?”, questiona. “Enquanto isso o caso só piora, não ando mais e estou com depressão porque não posso nem sair da cama sem ajuda.”
A falta de pediatras é um problema para a dona de casa Maria Aparecida da Silva, que já por duas vezes tentou levar a filha de quatro meses ao AMA Santa Marcelina, em Itaquera, e não encontrou o especialista. “Disseram que era possível que eu encontrasse lá para os lados do Belém”, lembra, referindo-se a outro bairro da zona leste paulistana
“Tanto o Santa Marcelina quanto o AMA do Hospital Planalto não atendem. Também já fui lá e não encontrei pediatra”, conta. “Todo mundo que chegava voltava com as crianças, porque eles já iam avisando, da porta mesmo, antes de a gente entrar, que não tinha pediatra e que não tinha como atender.”