Snowden ganha a companhia de "Crime e Castigo" na espera por asilo. Advogado entregou ao ex-consultor da CIA, ilhado em aeroporto, um exemplar da obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski
No filme norte-americano O Terminal, o personagem Viktor Navorski, interpretado por Tom Hanks, é impedido de entrar nos Estados Unidos e fica preso em um aeroporto em Nova York antes de poder voltar à sua terra natal. Nesse meio tempo, ele leva uma vida normal, faz amizade com os funcionários e até tem um caso amoroso com uma comissária de bordo.
Já Edward Snowden, que há um mês vive no aeroporto de Sheremetievo, em Moscou, porque não possui documentos para entrar no país ou sair dele, não parece ter uma rotina tão agitada. Hoje, seu advogado, Anatoly Kucherena, uma das poucas pessoas que mantêm contato com ele, levou-lhe alguns itens básicos para o dia a dia, como calças e camisas limpas (já que ele está “há um mês usando as mesmas roupas”). No pacote também estava, curiosamente, Crime e Castigo, obra clássica de Fiódor Dostoiévski.
Ao entrar no aeroporto com uma mala grande, Kucherena despertou a curiosidade de quem o viu, gerando a expectativa de que fosse entregar a Snowden os documentos necessários para que ele continuasse sua viagem rumo à América Latina, como a imprensa noticiou nesta manhã. Entretanto, na mala só havia roupas e muitos livros.
“Eu comprei para ele Crime e Castigo”, declarou o advogado aos jornalistas. “Vale a pena ler, especialmente por Raskolnikov”, completou, se referindo ao personagem principal do romance. Raskolnikov é um jovem ex-estudante de Direito, pobre e desesperado, que perambula pela cidade de São Petersburgo até cometer dois assassinatos em sua tentativa de conseguir dinheiro de maneira rápida.
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Depois do crime, ele nem mesmo consegue usufruir do que roubou, apavorado com a possibilidade de ser descoberto e preso, e acaba enterrando tudo debaixo de uma pedra para buscar depois. A partir daí, Raskolnikov passa a viver em um estado febril permanente, sem diferenciar realidade de paranoia, obcecado com seus atos e as consequências deles.
O jovem russo sente-se extremamente culpado, mas continua tentando se justificar e desculpar perante si mesmo, comparando-se a grandes homens, como Napoleão Bonaparte e César, que não por acaso também foram grandes assassinos absolvidos pela História. Ele se agarra à teoria de que é uma pessoa diferenciada e superior e, por isso, tem mais direitos do que os outros, até admitir que é tão importante para a humanidade quanto um “piolho”.
Kucherena não deixou claro porque gostaria que Snowden lesse o livro, mas dizer que valeria a pena “especialmente por Raskolnikov” é, no mínimo, sugestivo. O norte-americano é perseguido pelo governo dos EUA por ter vazado informações de programas secretos de espionagem para a imprensa internacional e, se for preso, pode ser acusado pelo crime de conluio com o inimigo e ser condenado à prisão perpétua ou mesmo à morte.
Se Snowden está ou não atormentado pela culpa de ter “traído a pátria”, não se sabe ainda. O que é fato é que, de certa forma, ele continuará a viver em um limbo, como Raskolnikov, por um tempo, uma vez que a Rússia negou ter fornecido os documentos para que ele deixasse o aeroporto.
Mas talvez isso não seja um problema muito grande para ele, já que Kucherena também declarou que Snowden pode querer permanecer na Rússia ainda alguns dias. O advogado já afirmou que gostaria de passear com ele por Moscou e lhe mostrar a Praça Vermelha. Ele ainda acrescentou que presenteou o ex-analista da CIA com um livro em russo e que este até já aprendeu algumas palavras da língua.
Sobre o que Snowden pode fazer enquanto permanece detido na zona de trânsito do aeroporto, Kucherena parece não ter dúvidas de que a melhor atividade é a literatura. “Eu também comprei [um livro de] Tchekhov para a sobremesa”, disse.
Marina Castro, Opera Mundi