Maré de terror e sangue. Depoimentos de moradores da comunidade carioca invadida pelo Bope na última semana traçam um quadro de abuso extremo e violência policial
Marianna Araujo e Vitor Castro, APública
Noite de segunda-feira, dia 24, um grupo não identificado efetuou um roubo na Avenida Brasil, via expressa localizada na zona norte do Rio de Janeiro, no limite do conjunto de favelas da Maré. Segundo a polícia, houve um “arrastão” na avenida, e o grupo teria corrido para a Maré pela Rua Teixeira Ribeiro, um dos acessos mais movimentados da favela. O Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar, o Bope, iniciou uma incursão na favela em resposta aos roubos, segundo a versão oficial. Durante a operação, um sargento do Bope, Ednelson dos Santos, foi baleado e morto.
A partir daí, os moradores contam ter testemunhado cenas de terror. “Por volta das sete horas da noite eu já soube que um rapaz tinha sido baleado. E até de manhã ainda tinha tiro. Foi a madrugada toda de tiro”, afirma Bira Carvalho, fotógrafo e morador da comunidade.
Bira é uma liderança da favela e durante todo o dia de quarta-feira permaneceu nas ruas, constantemente acionado por moradores que relatavam casos de violência, abusos e extorsão. “O que eu ouvi foi sobre a brutalidade do Estado, o desrespeito, as casas invadidas. As pessoas foram mortas em casa. A morte de um policial gerou uma chacina aqui”, relata o fotógrafo.
“O que aconteceu aqui foi uma coisa inédita. Foi uma arruaça. Muito tiro. Um dos policiais viu uma vizinha que estava na janela, parou na porta dela e gritou ‘tu não vai sair não né, sua piranha? Se eu subir ai vou botar tu pra mamar’. Eles passam um medo muito grande. As crianças ficam aterrorizadas”, conta o morador W., que preferiu não ser identificado.
Uma senhora – que também preferiu não se identificar – teve o filho, pedreiro, atingido nas costas. Ele foi baleado ao retirar uma criança que da janela observava o tiroteio. Eram cerca de nove horas da noite. “Nós mesmos socorremos ele. A gente não sabe de onde veio o tiro”, diz a mãe. “A gente ficou esperando um tempo em casa para poder sair. Ele perdeu muito sangue. O confronto continuou e a gente saiu no meio do tiroteio pra ir para o hospital”. A irmã do rapaz atingido, assustada, teve que entrar em casa correndo.
“A hora que eles entraram aqui foi muito errada. Justamente na hora que todo mundo chega do trabalho”, ela explica, enquanto a vizinha que acompanhava a conversa deixa claro o medo e terror a que são submetidos os moradores: “A gente tem que ficar quietinho em casa. Trancado. Porque não tem bala perdida. É só bala achada. Eu dormi com meu portão aberto porque eu fiquei com medo de ir lá fechar. Subi, apaguei as luzes e fiquei só rezando”.
C. também voltava pra casa com a mulher. Estavam de carro e tentaram entrar por um acesso que parecia mais tranquilo. “Quando eu entrei na favela o caveirão entrou atrás. Só escutei o barulho das balas quebrando o vidro. O tiroteio começou depois que eu fui baleado”, diz ele. A sua mulher explicou que assim que entraram vieram tiros do caveirão e o marido deitou-se sobre ela para protegê-la. “Na minha direção veio logo um tiro. Eu vi o tiro sair no vidro da frente, ia vir na minha nuca. Quando eu levantei, vi que ele já estava no chão atingido. Todos os tiros entraram pela traseira do carro, vieram do caveirão. Eu desci, fiquei pedindo socorro, botei a mão pro alto e fui na direção deles dizendo que era trabalhador pedindo socorro. Eles não saíram para socorrer ele. Puxaram o caveirão e um carro conseguiu passar pra socorrer”. C. ficou no hospital até a tarde de terça-feira, quando a equipe médica disse que não seria possível retirar a bala. Após ser liberado do hospital, ele deveria procurar o posto de saúde da região para realizar curativos. Chegando lá a família descobriu que não havia material para curativos. Tiveram que comprar. A família guardou fotos do carro e pretendia dar queixa do ocorrido.
‘Foi a pior operação que já vi na minha vida’
Na tarde de terça-feira, menos de 24 horas depois da entrada da polícia na favela, o número oficial de mortos já era de nove pessoas. E muito mais gente sofreu, como destaca o fotógrafo Bira: “Não é só a morte de pessoas. É o descaso, a forma de tratar o morador, são os palavrões gritados aqui. A violência mais evidente acaba sendo as mortes, mas a violência que acontece aqui dentro é generalizada, é psicológica, é o medo que marca pra vida toda. Marca na alma, mais do que fisicamente”, diz.
Uma mobilização reuniu 500 pessoas em passeata e, no fim do dia, as forças policiais se retiraram da favela e assumiram o compromisso de não realizar mais nenhuma incursão naquela noite. Parte da Maré entrou na segunda noite sem luz, pois transformadores foram atingidos por tiros. Muitas casas estavam também sem internet. A energia só voltou por volta das 11 horas da quarta-feira, dia 26.
Embora não more mais na Maré, Eliana Sousa é outra liderança da comunidade. Dirige uma organização de atuação local, foi criada lá e já foi presidente da associação de moradores. Ela chegou ao local na terça-feira pela manhã. “Eu já sabia que tinha morrido um policial e eu pude ouvir na rua coisas como ‘a gente só sai daqui quando matar muito’. Fui ficando assustada porque na realidade eles estavam revoltados com a morte e isso gerou uma indignação que eles não controlaram”, diz.
Os relatos de casas invadidas, colhidos pela reportagem da Pública, são muitos. “Foi um terror. Eu sou nascida e criada nessa rua. Nunca vi um terror assim. Ninguém podia sair de casa nem pra comprar pão. Foi a pior operação que eu já vi na minha vida”, resumiu uma moradora que, como a maioria, pediu para não ser identificada.
Ela é vizinha de M. que teve a porta derrubada e a casa invadida por policiais no início da madrugada. Os 15 homens ficaram até o dia amanhecer – sua laje foi usada como base durante a operação, ela explica. “Quando chegou lá em cima falaram pro meu filho e pro meu genro ‘se eu achar qualquer coisa eu vou matar vocês’. Quando desceram me mandaram fechar a porta. Eu perguntei ‘que porta eu vou fechar? Eu sou assalariada, como eu vou fazer com a porta’? Ele tirou R$ 180 e me deu. Mas a porta nova foi R$ 380″, conta, dizendo não ter como reclamar do abuso. “Conforme eles puxavam a arma, eles batiam foto dos meninos daqui de casa. Tiraram fotos da gente. Então, eu vou denunciar pra quê?”.
Outra moradora conta que a casa foi invadida enquanto ela e o filho de 17 anos dormiam. “Eram 8 horas da manhã. Tiraram meu filho da cama. Meu filho tem problema psiquiátrico e tava dormindo. Aí ele disse ‘isso é vagabundo’. E começou a gritar: ‘cadê o laudo dessa porra?’. Eu disse pra ele ‘vocês estão fazendo o papel de vocês, mas tem que ser dentro da lei. Invadiram a minha casa, sem mandado, sem nada, nenhuma denúncia’. Bagunçaram tudo. Mandaram acordar todo mundo. Mas não levaram nada. Sei que teve casa que levaram 300 reais. Ninguém dormiu aqui a noite toda. 5 horas da manhã ainda estavam dando tiro”, conta. “Vi eles xingando professores na rua, querendo tirar o celular da mão deles. Xingando com nomes horríveis. Porque eles estavam quebrando carros na rua e os professores filmando. Isso eu estava vendo”, conta X., indignada.
Caminhando pelas ruas, a reportagem encontrou E., que recolhia dinheiro com vizinhos para completar o pagamento do enterro do filho de 21 anos que custou R$ 2700. “Ele trabalhava vendendo salgado e na serralheria comigo. Estava abrindo a loja para pegar os salgados e foi atingido”, afirma o pai. Na outra esquina amigos imprimiam camisas na hora com a foto do garoto assassinado como forma de homenageá-lo. “A gente se sente é oprimido e humilhado. Eu pensei até em fazer uma besteira. Encher um saco de pedra e da passarela atirar na primeira viatura que passasse, mas depois eu pensei que podia acertar alguém”, diz E.
Para Eliana esse cenário de terror ainda persiste porque a ideia de que o Bope vai para a favela resolver uma situação de guerra se generalizou. “É aí que a gente vê que o Bope não é uma polícia preparada para isso, porque ela é preparada para situações limite, de guerra. O contexto da favela é complicado, mas há que se pensar formas inteligentes de se atuar, identificando quem comete atos ilícitos e não julgando todos que nela residem. A polícia tem que garantir segurança para as pessoas, investigar crimes. Uma polícia que pega uma pessoa cometendo ato ilícito, ela mesmo julga essa pessoa e dá como condenação a morte é inaceitável”, afirma.