Em defesa da população que não tem acesso a médicos nos grotões do Brasil e em protesto contra as perseguições ao programa Mais Médicos, médica expressa algo que parece esquecido: mais do que ganhar dinheiro, ser médico é se doar pelo bem do próximo
Em defesa da parcela da população que não tem acesso à saúde nem a médicos nos grotões do Brasil e pela melhoria do SUS, a médica Rafaela Alves Pacheco, natural do Ceará, entregou o cargo que ocupava na direção do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), que criticava o programa Mais Médicos, perseguia os coordenadores de cursos a estrangeiros no Estado e chegou a apoiar um ato em Recife promovendo o enterro do ministro da Saúde, Alexandre Padilha; em uma longa carta, ela expressa algo que muitos parecem ter esquecido: mais do que ganhar dinheiro ou fazer da medicina uma trincheira corporativista, ser médico é se doar pelo bem do próximo; Hipócrates com certeza aprovaria a decisão.
“A socialidade primária feita de coisas simples e arranjadas, de vizinhança e solidariedade está perdida no tempo. Nesta socialidade o ser humano não tem medida, ele é visto pela criatura que verdadeiramente é, na sua essência. Na sociedade de homens inteiros as sofisticações não existem. Não deve haver complexidades. O homem trabalha e divide o trabalho, ele sustenta e divide o sustento. Não há que armazenar porque sente a presença do semelhante. Esta sociedade, infelizmente, está no passado quase remoto, porém, não se perdeu na memória do poeta.” Marco Antônio Castelli.
Recife, 29 de agosto de 2013
Caríssimos e caríssimas,
Há tanto o que falar e me pego subitamente sem saber por onde começar. Então, me permito começar pelo começo.
Muitos(as) de vocês conhecem boa parte de minha história. Sou cearense, nascida em Fortaleza, filha primogênita de um casal de funcionários públicos: minha mãe, sertaneja, professora, formada em Pedagogia. Meu pai, serrano, terminou o segundo grau, mas não fez nenhum curso superior.
Os dois vieram de famílias simples e de proles grandes. Meu pai tem dez irmãos. Minha mãe, 14. A vida deles nunca foi muito fácil, especialmente a de minha mãe. Meu avô materno fez uma morte súbita ainda jovem e minha avó (que todos vocês bem conhecem, por repetidas vezes eu citar seus sábios dizeres em reunião) precisou redobrar seus trabalhos com costura e bordado para conseguir a difícil tarefa de educar seus filhos. Educação essa que lhe parecia sagrada e da qual não abria mão, até porque pessoalmente nunca a teve.
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Sou a segunda médica da minha família. Tenho um tio materno médico pediatra. Sei na carne as dificuldades que minha família e eu passamos para que esse meu sonho acontecesse. Não ser nascida em família abastada ainda castra os sonhos de muita gente nesse país.
Eu consegui seguir o rumo que desejei, mas tenho a clareza que muitos não o fizeram, não porque não souberam desejar. Ou porque são “menores”, “piores” ou “mais fracos”. Não porque não foram “persistentes”. Há todo um sistema que retroalimenta e culpabiliza o inconsciente das massas com essa falsa certeza. Muitos não possuem a possibilidade de escolher seus caminhos de forma livre porque não tiveram oportunidade. Porque o jogo está todo errado. Porque no mundo em que vivemos não é suficiente ser. É preciso ter.
Nesse cenário há duas escolhas: a primeira, manter-se no estado das coisas e seguir no rumo das ondas, aprendendo a nadar e evitando o risco de se afogar. E há uma segunda escolha, mais perigosa, mais tênue e instável, que é a de ousar, de remar contra a maré. Eu escolhi há muitos anos, em nome dessas tais e tantas pessoas mais humildes e sem rumo que dedicaria meu suor, minha força, minha cognição e meus dias nessa segunda proposta, de modo a permitir que tivéssemos um dia, um mundo de fato partilhado entre todos e todas. É ideológico. É pessoal, é político. É existencial.
Assumi e assumo diariamente os riscos e contradições dessa escolha e construo minha trajetória absolutamente balizada por essa convicção. Alguns chamam isso de paixão. Para muitos pode parecer piegas, insensato. Pode parecer ridículo, obsoleto. Utópico demais. Mas acredito que somos livres para optar, assumindo a responsabilidade que todo poder nos proporciona. Inclusive o poder de pensar.
Minha escolha profissional dialoga diretamente com essas questões. E desde estudante, construí caminhos de protagonismo tanto de cuidado com o outro, como de cuidado com o mundo. Comecei a fazer atividades comunitárias, a pisar na lama e a sentir o cheiro do Brasil ainda com cara de menina, quando consolidei ainda mais esse pensamento. Não me sinto seduzida pela pompa que a medicina desenhou ao longo de sua história. Encanto-me é com a possibilidade de olhar no olho das pessoas, de sentir o calor que elas passam, rir suas risadas, chorar seus prantos, sejam ricas, sejam pobres. Tenham dentes na boca ou não. Eu quero ajudar a produzir plenitude de vida para mim e para os que me cercam, não necessariamente nessa ordem. Eu sou uma médica que gosta do bicho gente.
Escolhi participar diretamente das entidades médicas há mais de três anos, mas acompanho as posturas do SIMEPE há quase 13 anos. Vi, desde há muito, um sindicato que se destacava por ser diferente.
Era diferente, porque apesar de fazer movimento de área, equivocada construção histórica da organização dos trabalhadores que retroalimenta o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, não priorizava uma pauta auto-centrada. Mesmo com todas as contradições e momentos específicos, partilhava a pauta com a agenda de consolidação do SUS, com os demais trabalhadores da saúde e se importava verdadeiramente em construir junto com a opinião pública e sociedade.
Era diferente, porque se destacava regional e nacionalmente por ter um discurso combativo sim, mas qualificado e construtivo. Protagonizou grandes e belas lutas, tensionando importantes vitórias que extrapolavam o umbigo da categoria. O Brasil inteiro sabia que o SIMEPE era diferente, a entidade sempre foi procurada para opinar sobre um tudo. Essa casa cresceu, vinha mudando de cara, mas há muitos anos prezou por ser para além de uma entidade representativa de médicos. O SIMEPE fazia movimento social.
Venho de uma geração nascida após a reabertura política brasileira. Dei meus primeiros passos e fui crescendo junto com a redemocratização. Costumo participar e construir por dentro os processos e, sendo escutada, respeitada e bem vinda, topo inclusive os enfrentamentos. Pela palavra. Pelo argumento. Mesmo com todas as divergências, topo discutir e encontrar um denominador comum que possui um único norteamento e fiel nessa balança: o bem estar das pessoas. A defesa da vida das pessoas.
Vim de seis anos de movimento estudantil, de mais seis anos de medicina de família e comunidade, dois desses de medicina rural. Participei e participo do movimento feminista, da reforma psiquiátrica, do movimento de reforma sanitária. E esses capítulos da minha história moldaram e moldam o que sou hoje. É por essa história que vivo, ela é meu maior patrimônio. E é por ela que falo agora.
Sempre tive múltiplas diferenças e discordâncias com vocês. Na verdade, com as entidades médicas como um todo. Nunca gostei de alguns silêncios seletivos e de uma variedade de questões e posturas internas e externas do movimento médico, ao meu ver bastante conservadoras. Nunca me senti confortável com o corporativismo que coloca o bem estar do médico em primeiríssimo lugar. Que escolhe calar, a falar. Mesmo que isso custe o zelar pela boa medicina e pelo bem estar dos pacientes. E que ajuda, por consequência, a manter uma inércia social que há mais de 500 anos corta e sangra os mesmos. A mesma gente brasileira de sempre.
A nossas concepções de missão dessa casa já eram, de saída, diferentes. Entrei no SIMEPE para fortalecer a agenda do SUS, para construir qualidade na medicina e para defender os bons médicos e suas equipes. Essa sempre foi minha maior mobilização. Sempre fui muito honesta com vocês quanto a essa diferença, nunca escondi essas vicissitudes. Mas foi muito duro perceber o crescente dessas nossas diferenças. Segui com meu espírito crítico chamando as partes a pensarem, mantive-me falando mais internamente e calando mais externamente, por respeito a esse grupo e as coisas que acreditei serem ainda possíveis de serem construídas com vocês. Um silêncio caro, que me faz sofrer horrores nesses últimos meses.
Mas infelizmente o que eu temia aconteceu. O esquentar dessa guerra sangrenta, a agudização das dicotomias, a fervura apaixonada das discordâncias ideológicas culminaram com o esbravejar uníssono e inconsequente da categoria médica. Que se perdeu no discurso, que não soube pautar as importantes e pertinentes considerações que trazia. Nada além da raiva de nunca ter perdido antes. Não separou o joio do trigo, os pleitos de direitos, dos de privilégio. Não soube ser generosa. Não soube ser estratégica. A indignação de perder parte do seu histórico biopoder é inaceitável para muitos, que preferem esperar na antessala da nação, enquanto alguém mágico resolva (ou não) construir o tal país de maravilhas que tanto merecemos. O Brasil precisa de mais.
As lideranças médicas optaram por abrir uma caixa de Pandora, que não sei sinceramente se irão conseguir fechar. Dispararam uma onda e vem perdendo de forma avassaladora a credibilidade social e colocando-nos, todos, numa berlinda que nunca fiz por onde estar.
As máscaras seguem caindo e mostrando, a todo momento, a todo gesto, quem realmente é quem. As pessoas nobres e toscas dos dois lados. Porções de nobreza nas considerações de ambos os segmentos. Pessoas da base e do governo azeitadas pela mídia e opinião pública em franco maniqueísmo. Muito grito, muita indignação, muito desrespeito. Muito ódio.
Definitivamente não funciono nesses termos. Não foi com isso nem pra isso que vim a esse mundo. Sinto-me cada vez mais escanteada e menos escutada nessa casa. Por mais que eu fale, argumente, persista, venho assistindo ao ascenso de uma agenda fortemente corporativista e conservadora por parte das entidades médicas e especialmente do SIMEPE. Agenda essa que não me move, só me comove.
Enterrar o ministro da saúde e por consequência toda a atual política de saúde do país e do SUS por conta da discordância quanto ao Programa Mais Médicos não combina com minha história.
Assistir incólume a toda a perseguição e coação de pessoas importantes pro SUS e pro SIMEPE por parte de uma base raivosa e revanchista, sem absolutamente nenhum respeito e pronunciamento em defesa dos mesmos por parte dessa diretoria não combina com minha história.
Uma campanha de mídia que ataque frontalmente o SUS tratando-o como um navio afundando ou um avião caindo e a comparação falada em rádio de que médicos estrangeiros são “pernas-de-pau” na medicina não combina com minha história.
Mas o que o SIMEPE fez na assembléia da última segunda feira 26 não tem nome. Pelo que se consagrou chamar de ética e pela defesa dos médicos, optou-se por perseguir, retaliar e atacar…médicos! Os maiores e mais poderosos, xingados. Os menores, processados, podendo perder seus registros profissionais. Porque ousam discordar. Convivo, trabalho e milito há muitos anos com Rodrigo Cariri. Sei de sua história, de seu valor, de sua coragem. E sei que vocês também sabem. Expor ele e quem quer que fosse a essa situação vexatória por discordância política, repito, não tem nome.
O dedo julgador da categoria médica acordou para apontar não omissões de socorro, maus tratos aos os pacientes, desvios de verba do SUS, escalas não cumpridas de plantão, gestores corruptos, cobranças indevidas de procedimentos, relação incestuosa com a indústria farmacêutica. O dedo apontou para quem topou discordar, quebrar o feitiço. Autoritário, vertical, covarde. Inaceitável. Bem destoante de tudo o que vi na história dessa casa até então.
E em sendo assim, com essa sequencia de acontecimentos, não me resta outra alternativa. Coloco hoje meu cargo de diretora de relações institucionais do SIMEPE à disposição. Não me sinto representada nem represento esse tipo de agenda e atitude.
Tenho a clareza que tentei de um tudo. Trabalhei e doei o meu melhor para construir o bom trabalho, o bom debate e a boa política ao longo desses três anos. Lutamos juntos por muitas coisas que julgo importantes e aprendi a conviver e a ter amizade pessoal com boa parte de vocês. Nossas diferenças não nos impediram de nos afeiçoarmos e permaneço tendo afeto verdadeiro por muitos que aqui ficam.
Sei que uns lamentarão, outros comemorarão e outros sentirão alívio com minha saída. De toda forma, agradeço a oportunidade de convívio e aprendizagem. Aprendi muitíssimo com vocês. Espero ter cumprido o meu papel. Espero, também que tenham a grandeza de fazer uma auto-crítica e ajustar trajetória para lutarem a boa luta. Força e disposição sei que não faltarão. E o SUS precisa demais da força de luta que o SIMEPE sempre lhe ofertou.
Agradeço especialmente aos funcionários e funcionárias do SIMEPE que sempre e tanto me acolheram. Meu carinho e meu desejo de boa sorte a todos e todas.
Desculpem o prolongamento da carta. Sempre tanto a dizer.
Atenciosamente,
Rafaela Alves Pacheco.
Médica de Família e Comunidade
Militante em Defesa da Vida.
“Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até o ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas somos mais juntos. Sabemos mais uns dos outros e é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente…” – Guimarães Rosa