10 maneiras infalíveis de criminalizar a medicina cubana
Para facilitar a vida dos que combatem a chegada dos médicos cubanos com “isenção política e ideológica”, confira algumas dicas para criminalizar esses profissionais de saúde
Mário Bentes*, Revista Babel
Nota do editor: caso você seja contra o programa “Mais Médicos”, mas sua linha de raciocínio passe longe dos itens listados a seguir, então esse texto não é pra você.
Para facilitar a sua vida, amigos reacionários que combatem, sem “visões políticas e ideológicas”, a vinda de médicos cubanos ao Brasil – ainda que, whatever, não sejam apenas cubanos –, elenco aqui algumas dicas infalíveis para criminalizar a chegada dessas pessoas e também ao seu país. Para cada dica, também apresentamos os riscos de contraprova e os caminhos para contorná-las. Tudo simples e superficial, como suas mentes.
1. Acuse os médicos cubanos envolvidos nas missões internacionais de serem “guerrilheiros comunistas” enviados ao Brasil para fazer propaganda ideológica. Se a pecha não colar, já que os 132 mil médicos cubanos enviados a 102 países pelas missões internacionais não converteram nenhuma dessas nações, que continuam capitalistas (ufa!), tente ser pragmático para esconder sua paranoia reacionária e direitista – mas sempre desprovida de ideologias, claro.
2. Colete dados de blogs aleatórios, principalmente daqueles anti-comunistas disfarçados, mesmo que eles não apresentem fontes confiáveis, para sustentar sua tese (agora aparentemente desprovida de pretensões ideológicas) de que a medicina cubana não presta. Que a ilha está mergulhada em doenças erradicadas até em Serra Leoa e que… enfim, a medicina cubana não presta, fim.
Caso apareçam notícias de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) não apenas aprove, mas recomende o modelo médico cubano para o resto do mundo, faça vista grossa. Afinal, a OMS está cheia de comunistas. Mesma tática deve ser feita se a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecer o modelo clínico cubano de atenção a saúde básica. A ONU foi cooptada pelos rios de dinheiro castrista.
3. Mate o mensageiro antes que ele dê a mensagem. Para evitar que qualquer nova notícia incômoda, com aqueles chatos dados e números comprovados, venha a derrubar sua tese, bata sempre na mesma tecla: qualquer notícia favorável ao “regime comunista dos irmãos Castro” só pode ser propaganda oficial do governo. OMS achou a medicina cubana exemplar? Propaganda oficial do governo. ONU também? Propaganda oficial do governo. Nenhum dos mais de 100 países em todo o planeta nunca reclamaram do trabalho dos comunistas? Propaganda oficial do governo.
Leia também: os 40 mandamentos do reacionário perfeito
4. Não dê atenção a mentiras disseminadas pela propaganda oficial do governo, como “Cuba avança na prevenção e combate ao câncer com investimento em biotecnologia, afirma OMS”, ainda que esteja no site da ONU e ainda que quem afirme seja a OMS. Afinal, esses “médicos” de pele escura, com cara de empregadas domésticas, que não se impõem pela aparência, jamais poderiam ser médicos – que dirá bons médicos. Tudo mentira castro-comunista.
5. Coma pelas beiradas e adote argumentos serenos, como a exigência do Revalida para os cubanos. Ops, para qualquer médico estrangeiro. Evite fazer o que fizeram alguns médicos cearenses, que vaiaram a chegada dos cubanos no aeroporto (ainda que você tenha vibrado com isso). Afinal, sua luta é contra o governo do PT, que quer implantar a ditadura comunista no Brasil.
Se notícias antigas mostrarem que a vinda de cubanos era festejada, inclusive pela revista Veja, quando o presidente era o Fernando Henrique Cardoso e o ministro da saúde o José Serra – ambos do PSDB –, também faça vista grossa. No máximo, diga que “o contexto era outro”.
6. Diga que, nos moldes como está sendo feita, a contratação dos cubanos representa “escravidão” – já que o repasse do pagamento será feito direto ao governo comunista. Use palavras e expressões prolixas pro que você está acostumado, ainda que lembrem discursos de esquerda (risos), como “atentado às leis trabalhistas”, “exploração de mão-de-obra” e similares. Tudo bem que você nunca se importou com “escravidão” enquanto comprava suas roupas na Zara ou na Le Lis Blanc, ou quando foi contra a regulamentação do trabalho das domésticas. Mas agora é uma boa hora para mudar, não é mesmo? (quando a poeira baixar, volte a deixar o assunto de lado)
Leia também
7. Não se desespere se pintar alguma notícia de que os cubanos têm aparecido nos primeiros lugares no Revalida em edições recentes do exame, como 2011 e 2012. Afinal, a Escola Latino-Americana de Cuba (Elam), ainda que seja reconhecida por órgãos internacionais pela boa formação médica, é uma escola de formação marxista cultural. Fazer vista grossa é preciso. Se você não conheceu, nada aconteceu.
8. Procure notícias que sustentem sua tese. Exemplo: uma que diga que algumas prefeituras do interior têm o interesse de mandar embora os médicos brasileiros que já estão contratados para trocar por profissionais cubanos (mais em conta, afinal são escravos). Não importa se a safadeza é da prefeitura cujo prefeito você nem se interessa em saber de qual partido é. Não importa se o Ministério da Saúde já havia advertido aos espertalhões, quase dois meses antes, que essa troca não poderia ser feita e que demissões indevidas seriam punidas com o cancelamento dos repasses. Não importa se o jornal que publicou a notícia omitiu deliberadamente essa informação. Compartilhe e notícia e use-a como bandeira. Se o desmentido começar a circular, ignore.
9. Use como suas as palavras dos presidentes de organizações de classe, em especial a de que a formação médica em Cuba é insuficiente e que o currículo não é adequado ao nosso país. Ignore solenemente se algum líder da revolta tenha filhos formados na ilha comunista e que, inclusive, exercem a profissão no país. Se perguntarem, diga que os tais filhos do presidente seguiram o caminho correto e, depois de se formar na atrasada ilha, voltaram ao Brasil e fizeram o Revalida – onde tiveram que reaprender a medicina (nesse caso, continue repetindo o item 7).
10. Se nada mais der certo, e as notícias com fontes de credibilidade continuarem a circular e as notícias de fonte duvidosa serem desmentidas, pare por um momento, respire fundo e tome uma atitude ousada e corajosa: volte ao primeiro passo. Mesmo que haja dados suficientes para negar essas tolices de “guerrilheiros comunistas”, repita o processo sempre que alguém permitir.
*Mário Bentes é jornalista, escritor e fotógrafo.